sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Os testemunhos que envergonham a Igreja


Quem nunca ouviu contar um testemunho de dificuldade ou privação financeira que tivesse sido solucionado por Deus? Não sei há quanto tempo essa prática foi introduzida na liturgia do culto evangélico, pois desde a minha conversão, há mais de vinte anos, vejo que tem sido praticado comumente.
O último testemunho desses que ouvi tem alguns dias e foi dado por um pastor amigo meu. Na ocasião referida na história, contou, era recém-casado e estava sem dinheiro. Assim, combinou com a esposa de dormirem até mais tarde na tentativa de “escaparem” do café da manhã. Deus, em sua fidelidade, enviou um irmão que providenciou, uma cesta básica pela manhã e ajuda financeira.
Que Deus é fiel naquilo que promete, não temos dúvidas; que Ele faz milagres, isso sabemos. Mas esses testemunhos são a prova de que há algo muito errado no modelo de Igreja que nós temos sustentado. A Igreja coleciona acertos em várias atividades, mas há aspectos do modelo de igreja tal qual se vê hoje no Brasil que estão falidos à luz da Bíblia. Desse modo, é uma vergonha para nós que testemunhos assim sejam dados sistematicamente com o intuito de engrandecer o nome de Deus. Em algum momento da trajetória da Igreja fomos condicionados a certos desvios (que eram a exceção) que nos levaram para muito longe do alvo (se tornaram a regra). Eu explico.
Primeiro, uma olhada na maneira como a igreja em Jerusalém conduzia questões semelhantes revela que jamais houve entre aqueles cristãos testemunhos assim. Havia pobreza? Sim, havia muita pobreza. No entanto, os irmãos reuniam-se a ajudavam-se mutuamente de modo a não permitirem que alguém sofresse privações. Foi neste contexto e com essa finalidade que o quadro de diáconos foi criado (Atos 6). Deus age por meio da ação da Igreja, não exclusivamente por meios sobrenaturais.
Testemunhos como o do meu amigo pastor jamais seriam ouvidos em Jerusalém. Não só a igreja local estava envolvida no socorro aos necessitados, mas igrejas de regiões distantes também se mobilizavam para o auxílio aos pobres de Jerusalém. “Porque pareceu bem à macedônia e à Acaia fazerem uma coleta para os pobres dentre os santos que estão em Jerusalém” (Romanos 15.26). Seria vergonhoso e impensável alguém ter de dormir até mais tarde por falta de café da manhã, pois eles se ajudavam mutuamente e usavam bem os recursos trazidos pelos outros cristãos.
Esse quadro nos leva a um segundo ponto. Paulo orientou a que informássemos aos santos as necessidades que sofremos. Ele escreveu: “Comunicai com os santos nas suas necessidades” (Romanos 12.13). Que igreja está preparada e disposta a socorrer membros em suas necessidades? Não faz parte dos planos e dos programas normais das igrejas o socorro aos seus membros, digo socorro financeiro ao menos. A atenção maior tem sido dada e os recursos têm sido drenados para programas de expansão que não contemplam os próprios membros, antes, a divulgação do Evangelho. Penso ser um equívoco metodológico substituir o nosso testemunho pessoal diário, nas atividades comuns (nos âmbitos profissional, educacional e social) por programas caros que envolvem a minoria e não reúnem o máximo potencial humano da igreja, que a bem da verdade fica sentada nos bancos almofadados à espera do culto espetáculo. Em outras palavras, é mais frutífero (e bíblico) gerar cristãos que deem bons testemunhos nas suas atividades diárias, que sacar dinheiro de muitos para que poucos façam “a obra”.
Diante da confissão da necessidade de um irmão, o mecanismo padrão é “orar” e esperar que Deus dê a vitória ou faça “o tal do milagre”, que na minha modesta opinião acontece mais por pura misericórdia que por qualquer outro motivo. Deus não precisaria fazer milagre algum se nós mesmos praticássemos o que a Palavra diz para ser praticado. Se Deus tem feito milagres assim, é porque nós temos sido negligentes e egoístas até ao limite. Se esperássemos o socorro vindo “da terra”, muitos de nós já teríamos ido para o limbo.
Um modo novo de livrar-se dos “pobres necessitados” é acusá-los de falta de fé. Pessoalmente ouvi um pastor dizer que para resolver uma situação de dívida, o membro deveria fazer “um desafio de fé”, que nada mais é que aquelas famosas extorsões em nome de Deus. O texto de Provérbios 3.28 é claro, mas parece bem esquecido: “Não digas ao teu próximo: Vai, e volta amanhã que to darei, se já o tens contigo”. E o que diríamos de Tiago 2.14-17, que fala das “pessoas de fé” que não movem um dedo em favor do próximo?
E, finalmente, quero insistir no “clássico” texto de Malaquias 3.10, que diz: “Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa...” (Ênfase acrescentada). O que fazer com essa segunda frase do versículo? A frase condena os administradores das igrejas de modo geral por uma vergonhosa e flagrante omissão. À bem da verdade um roubo flagrante, pois se o membro que não traz o seu dízimo “rouba ao Senhor”, consequentemente a igreja que não cumpre o mesmo texto aponta para si o mesmo dedo acusador. Quando o texto diz “para que...”, o profeta-autor está indicando a finalidade, o uso devido a que os recursos dos dízimos devem ser destinados. A prioridade é o sustendo das necessidades locais dos membros, nada mais que isso. Enquanto houver um único membro padecendo, as atenções devem ser dadas a ele. Que adianta ganhar o mundo e perder a alma sentada ao lado?
Se as nossas igrejas cumprissem esse mandamento de Malaquias, jamais um testemunho como o mencionado acima poderia ser dado por qualquer um de nós. Nisso ficamos longe, muito longe, de todos aqueles a quem chamamos de hereges, como os maçons, os kardecistas, além de tantas outras religiões e organizações civis que cumprem facilmente o socorro aos membros de suas organizações. Alguém dirá que eles não têm fé em Jesus para serem salvos, e eu evocaria Tiago para dizer que “também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma” (Tg 2.17).

Na postagem anterior falei das receitas anuais das igrejas e da revolução que poderíamos fazer se levássemos a sério o que a Bíblia ensina sobre o uso dos recursos que reúne. A nossa “sorte” é que hoje não há alguém para cobrar isso de nós. E podemos nos desculpar dizendo que “isso sempre foi assim”; por enquanto. O que não dá para dizer é que o nosso ativismo é abençoado por Deus quando a Bíblia diz o contrário: “Portanto, aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4.17).

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A igreja de Roberto Justus


Tem alguns anos que venho falando e escrevendo sobre a influência do “mundo maravilhoso do Roberto Justus” na Igreja. É o mundo das metas a serem alcançadas, dos lucros e bônus a serem obtidos, dos programas ativistas que devem mobilizar os membros, da imposição e determinação de rumos e tendências (e modismos) e a influência e prevalência do mais competente na concorrência por fieis. Precisamos encher a igreja porque Jesus mandou! – é o que se ouve, embora Cristo nunca tenha dito isso.
Esse mundo permeado por dinheiro e fama é o nosso mundo, é o mundo no qual vivemos. E o fato de estarmos imersos nele, por si, pressiona todos nós a seguir as suas regras, a dançar conforme a sua música, que nem sempre é sacra.
A questão se coloca complexa até para aqueles que querem orientar suas vidas pelo que dizem as Escrituras, pois a essência da mensagem bíblica precisa ser revestida por uma embalagem. É preciso traduzi-la em termos contemporâneos e práticos, e é aqui que reside o problema. Como aplicar aquela mensagem aos moldes sociais de hoje? A prática do cristianismo precisa assumir determinada forma para fazer sentido aos de fora e aos de dentro, se é que queremos ser relevantes para alguém.
E esse é o ponto crucial, e onde vejo problemas. A mensagem bíblica propõe uma descontinuidade com o mundo, não a acomodação a ele, e o mundo propõe uma conformidade social na integração de todos – a eliminação das diferenças. Aplicar determinados trechos da Bíblia ao nosso mundo exigirá algum desconforto (em alguns casos muito desconforto), o que não será fácil viver nem ao menos ensinar o que implica isso. O modo de equacionar essa relação sem traumas é fazer uma leitura seletiva da Bíblia. Lemos e “vivemos” o que é mais confortável.
Por exemplo, trechos que exigem mais trabalho e despesas são podados do vocabulário e do sermonário. Mateus 25.38-40 é uma passagem que permanece no limbo. Quem pregaria sobre ela e convocaria a igreja a vivê-la intensamente?

Quando te vimos como estrangeiro e te acolhemos, ou precisando de roupas e te vestimos? Quando te vimos doente, ou na prisão, e fomos visitar-te? E o Rei lhes responderá: Em verdade vos digo que sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, ainda que dos mais pequeninos, a mim o fizestes.

Uma desculpa possível para a amputação desse texto é argumentar que a vocação daquela igreja é outra, e não cuidar dos carentes (afinal, “os pobres, sempre tendes convosco”, Mt 26.11). Que outros cuidem. Isso é remediado apresentando programas elaborados, complexos, caros e de longo alcance. “Estamos ganhando o mundo!”. Mas por outro lado estamos perdemos a alma que está sentada no banco ao lado.
Outra leitura seletiva feita dominicalmente é o clássico texto de Malaquias 3.8. “Você não está trazendo o dízimo para a Igreja? – Ladrão! Está roubando a Deus” – e cita-se o início do versículo 10. Mas apenas o início, que manda trazer “todos os dízimos a casa do tesouro”. Por que não é lido o restante do versículo, ao menos a frase seguinte? Ele não é digno de confiança? Não, a frase seguinte não é lida porque envolve responsabilidade e gastos maiores, exige sair da zona de conforto, convoca a sair do mundo de Roberto Justus onde os dividendos devem ser distribuídos, não acumulados.
O texto diz que os recursos dos dízimos trazidos são para prover o bem estar dos fieis carentes, dos que têm alguma necessidade, dos que precisam de socorro. Mas quem de nós quer comprometer-se a ter mais trabalho e gastos para socorrer irmãos que podem, por si mesmos, trabalhar “e se virar com seus problemas para lá?”. E então fazemos a leitura seletiva do texto: é lida somente a parte que interessa.
Precisamos abandonar esse modelo, mesmo que aos poucos, e equacionar a essência com a prática, romper o ciclo no qual o modelo social e econômico e a cultura na qual vivemos determina a maneira como interpretamos e aplicamos os ensinos de Jesus a nossas vidas – e até como aplicamos o dinheiro. Em 2011 a Igreja teve lucro (!) de R$ 460 milhões em rendimentos com ações e aplicações financeiras! Temos sido “engolidos” pelo modelo vigente, mas o modelo vigente é o modelo da cultura caída, corrompida, que não se importa com vidas humanas – mas as estatísticas são bem vindas (os números sim, as pessoas não).
Essa prática que importamos das corporações, das empresas de sucesso, está regendo o nosso modo de “fazer a Igreja”, está dirigindo a prática cristã no nosso tempo e nos distanciando cada vez mais daquilo que deveria ser a nossa marca distintiva, a Igreja como fonte de espiritualidade, comunhão e de humanização.
Uma Igreja poderosa pelo padrão “Justus” não faz qualquer diferença na sociedade porque se iguala a ela, e não terá nada que oferecer a alguém que procure uma Igreja justa, diferente. Os R$ 20,6 bilhões arrecadados pelas igrejas em 2011 (dados da Receita Federal) fariam anunciar uma mensagem que não poderia ser rejeitada por nenhum incrédulo. Daria para tirar com muita sobra os 6,5 milhões de brasileiros da extrema pobreza e ainda sobrariam quase R$ 20 bilhões. Mudaríamos a vida dos que estão na faixa da pobreza. Faríamos uma revolução nunca antes vista na história do cristianismo.
Mas o leitor não se iluda, porque não estou coberto de razão. Eu também estou integrado a esse mecanismo e também ajudo a “alimentar o monstro”. Mas me reservo o direito de dizer o que tenho refletido, pois tenho inquietações pessoais. Talvez eu esteja muito equivocado, e no caso alguém poderá me ajudar a ver melhor as coisas. Mas insisto em tentar lançar luz na questão para um diálogo.

O que não posso ignorar é que há algo muito errado quando um cristão, empregado, trabalhando até 12 horas por dia, dizimista, com cargo na igreja local, chega a sua casa e ouve do filho que “as coisas estão difíceis, pois só havia meio copo de leite para beber” quando o garoto chegou da escola. Ou a igreja confundiu os papeis nalgum ponto da história ou “as portas do inferno” estão prevalecendo contra ela.