sexta-feira, 22 de maio de 2015

God save os árabes, os edomitas, os egípcios e tantos outros



É frequente encontrar e ouvir pessoas que torcem o nariz quando o assunto é a salvação dos árabes (e dos muçulmanos), o cuidado de Deus com eles e a sua relação com os judeus. Já vi cristãos bem experientes indignados “contra” com os edomitas, os egípcios e demais povos com os quais Israel teve problemas no Antigo Testamento.
Basicamente isso acontece por uma má compreensão do leitor. A Bíblia diz que Deus fez a Abraão uma promessa específica que se cumpriria por meio de Isaque, “o filho da promessa” (Gn 15.4). Assim, quando o assunto é o seu meio irmão Ismael, filho de Agar (a egípcia), e os seus descendentes, os ismaelitas, logo se pensa que são um povo condenado, uma vez que a promessa “de Isaque” não se cumpriria em Ismael, que teve de ser despedido por Abraão. Sara orientou a Abraão para despedir o menino e sua mãe Agar, porque ele não herdaria com Isaque, “o filho da promessa”. No entanto, Deus não colocou um ponto final nessa história, mas uma vírgula, e acrescentou no versículo 13: “Mas também do filho desta serva [Ismael] farei uma nação, porquanto é tua semente [isto é, de Abraão]” (Gn 21.13).
Aqui é preciso entender, em primeiro lugar, o que a promessa significa e a que diz respeito. A promessa “sobre Isaque” (confirmada a Jacó/Israel) diz respeito à criação de um povo com vocação sacerdotal, o povo judeu. O povo judeu deveria ser a ponte para ligar as nações com o Criador; mas nisso Israel falhou. No mais, a criação do povo judeu não tem coisa alguma que ver com a salvação de outros povos da humanidade, a não ser que Jesus nasceu entre os judeus para salvar a humanidade. Eu sei que “a salvação vem dos judeus”, mas isso não significa que os judeus sejam doadores da salvação ou que tenham qualquer participação ativa, eficaz ou por graça (doação) na salvação de quem quer que seja. Aliás, até mesmo eles (individualmente) precisam da salvação oferecida por Jesus, coisa que alguns desconheciam: “... e não presumais de vós mesmos, dizendo: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mt 3.9).
Em segundo lugar, a vinda de Jesus completou o modelo de Deus para a salvação de todos os povos, sem exceção. O Senhor quer a salvação de todos, porque Ele mesmo disse “não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho e viva” (Ez 33.11). Esse é um princípio geral das Escrituras e os Evangelhos não deixam dúvida alguma sobre a abertura da salvação para todo aquele que crer em Jesus, sem vinculação genética ou consanguínea com judeus. Aliás, desde o Antigo Testamento o Senhor manifestou o interesse na salvação das demais nações existentes. Os livros dos profetas estão repletos de exemplos da boa vontade de Deus em relação aos vizinhos de Israel, embora muitos deles se mantivessem resistentes a essa oferta de salvação e a rejeitassem, preferindo os seus deuses (2Re 17.29 e outras).
Uma leitura atenta e sem preconceitos revelará que o próprio Deus disse que faria dos descendentes de Ismael filho de Agar um grande povo, assim que ele e Agar foram despedidos por Abraão:

Que tens, Agar? Não temas, porque Deus ouviu a voz do rapaz desde o lugar onde está. Ergue-te, levanta o moço e pega-lhe pela mão, porque dele farei uma grande nação. E abriu-lhe Deus os olhos; e viu um poço de água, e foi-se, e encheu o odre de água, e deu de beber ao moço. E era Deus com o moço, que cresceu, e habitou no deserto, e foi flecheiro (Gn 17-20).

Ora, há dois elementos esclarecedores nesta porção da Escritura. Primeiro, o fato de o Senhor, pessoalmente, dizer que aumentará os descendentes de Ismael, que são os povos árabes. Essa é uma questão que deixa os simpatizantes de Israel em total desconforto, porque não admitem que o Senhor possa ter feito uma promessa a Isaque e, mesmo assim, comprometer-se com Ismael. O versículo 20 enfatiza esse ponto: e era Deus com o moço, que cresceu. Deus não repugnou os árabes, nem os abandonou à perdição.
O segundo ponto, diretamente vinculado ao primeiro, é a revelação imediata a respeito da relação espiritual de Deus com os descendentes ismaelitas. Na jornada de partida, Agar havia deixado Ismael debaixo de uma árvore e afastou-se para não o ver morrer desidratado. Ambos vagavam pelo deserto já sem água e sem comida, mas nesse momento de ocaso da vida o anjo do Senhor apareceu a ela e Deus abriu-lhes os olhos, e viram um poço de água. Assim como o anjo apareceu a Abraão quando Isaque estava prestes a ser imolado no Moriá, apareceu também a Agar quando Ismael estava prestes a sucumbir no deserto e a Providência divina se manifestou rica, abundante e salvadora.
Bem sabemos sobre o simbolismo da água em toda a Bíblia e que foi Jesus mesmo quem disse que tem água viva (Jo 4.10) e “quem tem sede venha a mim a beba” (Jo 7.37). Só Ele tem a água da vida (Ap 22.17). Quem pode negar que o Senhor foi ao deserto para salvar Ismael? Ainda que a promessa da formação de uma nação recaísse sobre Isaque, Ismael e seus descendentes não são menos humanos e menos carentes da salvação e do cuidado que Deus tem para dar. Constitui-se um preconceito e má compreensão do plano geral de Deus quando certos segmentos da Igreja ignoram essa questão em favor de um apoio incondicional a Israel em detrimento aos países e povos vizinhos no Oriente Médio. Do Senhor é a terra e os que nela habitam (Sl 24.1).
O Novo Testamento deixa claro que Israel falhou em sua missão de anunciar ao mundo a vinda do Messias, o Salvador. Israel não se preocupou em anunciar aos demais povos a salvação de Deus,[1] embora o Senhor quisesse salvar a todos os homens que cressem em sua mensagem. Nesse sentido, é frequente a manifestação de Deus no Antigo Testamento lidando com determinado povo estrangeiro como sendo de Seu interesse, pois Ele criou a todos os povos e quer que todos sejam salvos (2Pe 3.9). O Senhor chamou Ciro de “meu pastor” em Isaías 44.28 e de “meu ungido” em Isaías 45.1. Também chamou o próprio Nabucodonozor de “meu servo” em Jeremias 25.9. E, finalmente, disse à “impura” samaritana que o lugar de adoração não estava entre os judeus nem entre os samaritanos, mas no coração dos homens e em todo lugar.
Frequentemente o Senhor mostrou zelo e amor por povos vizinhos a Israel embora não houvesse a reciprocidade da parte deles. Não faltam textos no Antigo e no Novo Testamento dando conta de que no futuro, quando o Senhor reinar, atrairá a Si todos os povos e reinará sobre eles. É preciso compreender o sentido das declarações de Deus dizendo que destruiria um povo rebelde e obstinado. Elas não são absolutas se considerarmos o ensino amplo, geral das Escrituras. Veja o caso clássico dos ninivitas, que foram condenados por Deus à destruição em quarenta dias (Jn 3.4), mas após a pregação de Jonas houve o maior número de conversões em toda a Bíblia: mais de 120 mil pessoas (Jn 4.11). Eles não foram destruídos como Deus disse que seriam, porque declarações dessa natureza não constituem um princípio geral nas Escrituras ou uma declaração absoluta de Deus.
Na interpretação de passagens como essa é preciso considerar:
1. A situação ou o momento histórico. A maioria das passagens dos profetas ou dos livros históricos do antigo Testamento que condenam um ou outro povo tratam de situações específicas na contagem do tempo. O próprio Israel foi desalojado de sua terra pela desobediência, mas posteriormente restaurado pelo Senhor. Então, em dados momento, um povo está em rebelião contra Deus, mas noutro momento histórico a reconciliação poderá acontecer.
2. O ensino amplo como princípio geral para os casos particulares. Deus não tem prazer na morte do ímpio é um princípio geral em toda a Bíblia. Assim, sempre que houver arrependimento, de quem quer que seja, o Senhor se dispõe a voltar atrás em sua Palavra e salvar o arrependido. Ele criou a humanidade e não desistiu dela, portanto, é enganoso pensar que Deus queira destruir um povo que deu as costas para ele ou que Deus rejeite esse povo hoje. O Senhor amou o mundo de tal maneira (Jo 3.16).
 Na plenitude dos tempos, no Novo Testamento, a linguagem da reconciliação entre os povos é franca e mais frequente. Se no passado Noé havia dito uma sentença sobre o destino de seus filhos (embora muitos interpretem como sendo uma maldição de Deus, quando não foi), no Novo Testamento o próprio Espírito Santo agiu para revogar a sentença do patriarca, se é que ela teve algum efeito prático. A humanidade foi dividida em três ramos, conforme cada filho de Noé (Sem, Cam e Jafé). Entendemos que deles descenderam os povos que aparecem na Bíblia, os bem sucedidos e os não tão bem sucedidos. Mas com a vinda de Jesus no Novo Testamento, Deus propôs um equilíbrio, uma reaproximação ampla para a humanidade por meio da reconciliação oferecida em Jesus. Assim, os etíopes, descendentes de Cam, foram restaurados (At 8), como também os descendentes de Sem, como Saul (At 9) e os descendente de Jafé, como Cornélio (At 10). Ninguém foi rejeitado, porque o Senhor não rejeita povo algum, uma vez que Ele mesmo os criou. Depois, em Atos 11, surgiu uma igreja que entendeu o sentido plural de sua missão de levar a salvação a todos os povos, a igreja em Antioquia, onde pela primeira vez as pessoas de fé foram chamadas de cristãos (At 11.26).
Desse modo, a despeito de todas as maldições e distanciamentos ocorridos no passado remoto, nenhuma dessas armadilhas se mantém ativas diante do amor de Jesus na direção do pecador perdido, independente da sua origem étnica ou cultural. A oferta de salvação feita por Deus ao homem não se vincula a uma cadeia de DNA, mas existe exclusivamente pela fé; ninguém deve levantar dúvidas aqui (Ef 2.8,9). Assim, sejam os antigos babilônios (atual Iraque), sejam os persas no Irã, sejam os egípcios (onde surgiu uma das primeiras igrejas cristãs fora da Palestina ainda nos tempos dos apóstolos), sejam os edomitas (descendentes de Esaú; Gn 25.30), os moabitas e os amonitas na atual Jordânia,[2] sejam os árabes ismaelitas ou quem quer que seja, todos foram postos debaixo da maldição para que Deus usasse de misericórdia para com todos: “Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia” (Rm 11.32).



[1]Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que fechais aos homens o Reino dos céus; e nem vós entrais, nem deixais entrar aos que estão entrando” (Mt 23.13).
[2] O atual rei da Jordânia, em encontro com o presidente da Armênia, Serzh Sargsyan em janeiro de 2015, manifestou-se da seguinte maneira sobre os cristãos no Oriente Médio: “Os cristãos deram a sua própria contribuição à edificação da civilização árabe. Por isso, o fenômeno do deslocamento forçado das comunidades cristãs nativas do Oriente Médio é um problema grave, que deve ser freado a todo custo”. http://www.acidigital.com/noticias/rei-da-jordania-pede-frear-o-exodo-dos-cristaos-do-oriente-medio-73643/ em 22.05.2015.

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