por Magno Paganelli
Em outubro de 2019, produzi dois textos (o primeiro e o segundo) sobre o lado pouquíssimo explorado da questão entre
israelenses e palestinos (IP) na perspectiva cristã da Igreja evangélica
brasileira. Agora surge novo texto, de outro autor, com o título objetivo: “Quem
são os palestinos?”. O seu autor, diferentemente do autor dos textos aos quais
fiz referência, é meu conhecido. Alexandre Dutra, pastor batista, é mestre em
Literatura judaica pela USP e diretor do Ministério Amigos de Sião, trabalho
dirigido à evangelização e a aproximação com os judeus a fim de testemunhar de
Jesus para aquele povo.
Alexandre e eu já nos conhecemos. Participamos
de um programa na RIT TV, o Vejam Só, em meados de 2014, discutindo o conflito
em questão. Depois, na ocasião do meu doutoramento sobre o turismo para Israel
e Palestina, eu o entrevistei por quase duas horas, uma entrevista bastante
rica e reveladora. Tivemos a oportunidade de realizar alguns trabalhos juntos,
notadamente na produção de dois textos, e tenho por ele apreço e respeito, de
modo que aqui serão discutidas apenas as ideias contidas em seu texto. Elas
refletem o que pensam milhões de cristãos no Brasil, mas que recebem essas ideias
da Igreja norte-americana e as reproduzem sem uma crítica de qualquer natureza.
Começando com o subtítulo, ao dizer que os
palestinos são “os novos filisteus em Israel”, o texto remete a atenção do
leitor para um antigo inimigo dos judeus, conduzindo o sentimento desse leitor
para o que se insinua em quase todo o texto, de que os habitantes da região costeira
sempre serão inimigos dos judeus. A mesma intenção vejo quando se comenta os “aspectos
geográficos” e afirma que eles são “idólatras” (uma característica religiosa,
não geográfica). O povo de Israel no
Antigo Testamento (AT) dificilmente se viu livre de idolatria, desde a sua
inserção no território prometido e pela monarquia adentro!
A afirmação simplesmente procura pintar os palestinos (via filisteus) como
radicalmente irreconciliáveis com o povo do AT, o que não confere com toda a
realidade; os filisteus formaram a guarda pessoal do rei Davi, além de os
antigos judeus recorrerem aos filisteus para afiarem suas armas e ferramentas
agrícolas. É preciso destacar esses pontos positivos.
Quem são os filisteus? O texto diz que o nome
significa “errantes, e ou forasteiros” (sic),
sem dar a fonte, o que põe em dúvida a declaração do autor. J. D. Douglas (1995, p. 629) afirma que “os
filisteus são pela primeira vez mencionados pelo nome (prst) nos anais de Ramsés III, durante seu quinto ano de reinado
(1185 a.C.)” e sabe-se, como o pr. Alexandre bem demonstra, que “são povos do
mar”, vindos das ilhas do Mediterrâneo e fizeram parte do grande
movimento de povos que saíram da área geral do Mar Egeu cerca dos anos 1200
a.C., tendo chegado à costa mediterrânea do atual território palestino ainda
antes de os hebreus saírem do Egito.
A fim de demonstrar a incerteza em
torno da origem dos palestinos, o autor diz que “a origem da Filístia até hoje
é incerta e se constitui em um mistério para a arqueologia”, afirmação que
autocontradiz a interessante demonstração que ele faz da ocupação do território
na Antiguidade. Noto, ainda, imprecisão sobre o que nesta indagação ele quer
dizer por “Filístia”. Se for a região, não resta dúvida da sua posição
geográfica, o que derruba a tentativa de argumentação do autor ao dizer que é u
mistério para a arqueologia. Se for o povo filisteu, estranha o fato de ele
mesmo ter indicado a origem (“povos do mar”). Se faltam evidências
arqueológicas, a minha citação acima demonstra que o texto carece de pesquisa e
fontes (eu teria outras para citar). Portanto, a declaração não tem função
dentro da argumentação.
O problema maior do texto começa à
altura do tópico “A
entrada dos edomitas na equação”. A função do tópico não é outra senão vincular
o cumprimento de profecias que serão apresentadas na parte final do seu ensaio,
profecias às quais o autor procura fazer associação com os atuais árabes. Isso
provoca no leitor a sensação de que os antigos edomitas e os modernos árabes
sempre são intrusos na região. Ele diz: “[...] a fim de esclarecer a origem
do atual povo palestino, é chamado biblicamente de edomita”. E como os edomeus
foram parar na região palestina? O autor diz: “O
cativeiro babilônico e a questão da desertificação dos lugares conquistados se
tornou um fator determinante para a vinda dos edomitas para a região arrasada
de Israel”. Isso reforça a ideia de uma invasão estrangeira em terras
privativas dos judeus, que o texto pretende demonstrar.
Judeus
proprietários “exclusivos” da terra?
Aqui caberá uma nota minha sobre a
ideia de exclusividade de Israel na região. Muitos pastores e seus discípulos
evangélicos acreditam, equivocadamente, que há um direito exclusivo e incontornável
dos descendentes de Abraão dentro de certos limites geográficos no Oriente
Médio. Mas essa interpretação decorre de uma leitura apressada dos textos,
regada a uma boa dose de ideologia política, interesses econômicos e muita
desinformação. O pacto da terra prometida a Abraão não dá direito inalienável
aos “descendentes” de sangue de Abraão. Jesus já havia dito que até de pedras
Deus pode suscitar descendentes físicos de Abraão e Paulo, em Gálatas 3.16, já
demonstrou que o pacto se cumpriu na pessoa de Jesus, não da comunidade
judaica. O outro pacto de um trono, feito a Davi, Pedro demonstrou igualmente ter
se cumprido em Jesus (At 2.25-36). Não haverá uma monarquia futura por meio dos
descendentes judeus, pois ela já teve início no Calvário com um rei manso, não um
guerreiro militar.
É pertinente também destacar a questão
do estrangeiro na questão da terra e o faço recorrendo a textos do meu livro Milênio (2014). Canaã sempre esteve ocupada. Após o
chamado do Senhor, Abraão peregrinou na terra ocupada por diversos povos. Seu bisneto
José foi para o Egito e levou a família para o país. Passados quatrocentos
anos, os seus descendentes (hebreus) saíram do Egito rumo à terra prometida.
Eles não saíram sós, levaram consigo grupos minoritários: “Também
subiu com eles uma grande mistura de pessoas e uma grande quantidade de gado,
em rebanhos e manadas” (Êx 12.38). Neste mesmo capítulo de Êxodo 12, se diz que
aos estrangeiros foi proibido tomar parte da celebração da páscoa; mas, no v. 49,
lemos: “Haverá uma só lei para o natural da terra e para o estrangeiro que
estiver vivendo entre vós”. [1]
O tema do pobre, da viúva, do órfão e do estrangeiro é dominante no AT e
entrou no Novo Testamento (NT) por meio da epístola de um judeu, o apóstolo
Tiago (Tg 1.27). Em Israel havia leis para os estrangeiros que
peregrinassem em seu território (Levíticos 17.8,10,13,15; 19.34; 20.2; 22.18).
Cito aqui o texto de Levíticos 19.34: “O estrangeiro que viver entre vós será como um natural da terra.
Devereis amá-lo como a vós mesmos, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.
Eu sou o Senhor vosso Deus”.
Além das leis de
Levítico, foram dados mandamentos em Êxodo 22.21-23, que orientavam os judeus
no trato com os estrangeiros: “Não maltratem
nem oprimam o estrangeiro, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Não
prejudiquem as viúvas nem os órfãos; porque se o fizerem, e eles clamarem a
mim, eu certamente atenderei ao seu clamor”. Essa preocupação de Deus com os estrangeiros se deve, como
diz o texto, a dois fatos. Primeiro, ao fato de que o próprio Israel havia sido
estrangeiro no Egito e lá sofrera intenso período de escravidão, após a morte
de José. E segundo, ao fato de que “do Senhor é a terra”: “Ao Senhor
pertencem a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele habitam” (Sl 24.1; 89.11).
Há muitas passagens na Bíblia afirmando que o Senhor é
dono da terra, e autores bíblicos atribuem a Ele essa propriedade. A
mentalidade dos povos do Oriente Médio com relação à posse da terra difere
muito da nossa maneira de ver a questão. A terra é a fonte dos recursos, é de
onde se tira o sustento, e o próprio ser humano veio dela e para ela voltará (“ao
pó tornarás”). O Senhor dono da terra quer que seus filhos vivam nela
harmoniosamente, não que se matem por um pedaço de chão. O registro do sermão
profético de Jesus em Mateus 24, lemos a palavra ethnē (de onde temos etnia), povos da terra, que nossas traduções
verteram como “nações”. Jesus jamais ensinou a exclusividade da terra aos
judeus e nem Abraão, que recebeu a promessa da terra, fixou-se nela como proprietário.
Antes, vagueou como peregrino, porque esperava a cidade celestial (Hebreus
11.8-10), de modo que a luta pela terra hoje não encontra qualquer apoio honesto
nas Escrituras segundo as lentes do Novo Testamento. E cristãos não devem cair
no canto de sereia de interpretar a Escritura do AT sem a ler com os autores
apóstolos.
“Quem conta um conto aumenta um
ponto”
Agravando o tom do texto que estou contrapondo, o autor organiza as suas
ideias para mostrar que esses idumeus/edomeus invasores permaneceram na terra
até que os macabeus (ele coloca entre parênteses “judeus”, para reforçar o seu
argumento) “obtiveram vitória sobre os idumeus, em 164 a.C.” – introduzindo o
elemento bélico como maneira de se solucionar problemas no plano espiritual. De
fato, se o texto fosse composto por um judeu sionista, vá lá. Mas isso causa
estranheza por ser um texto cristão recorrendo a essa justificativa como a mais
plausível da perspectiva da fé.
O novo tópico “Renascimento do termo Palestina” surge com a
seguinte declaração: “Israel ficou sob
dominação estrangeira até 1948 [...] Isto levou a terra de Israel a ter uma
mistura de povos, além dos judeus é claro”. O que dizem os dados históricos
sobre o período anterior à Declaração de Independência? Segundo as fontes
israelenses pesquisadas por Edward Said (1935-2003), nascido em Jerusalém, os
judeus eram minoria na região. A região foi ocupada por árabes em sua maioria
com uma minoria de judeus. O próprio pastor Alexandre demonstrou que Jerusalém
foi rebatizada por Adriano no ano 135, pois haviam sido expulsos no ano 70. A cidade
foi também rebatizada como Bait-al-Makdis em árabe na idade Média, tendo sido descrita por
um historiador árabe que viveu na região (Mukaddasi, 1890, p. 84) como uma
grande cidade com clima agradável, onde “raramente neva”.
O Itinerário,
de Mukaddasi hierosolomita (946 A.D.), seguramente é o mais informativo relato
produzido no período sobre a região, a população e os costumes desde o início
das peregrinações cristãs (séc. III-IV). Ele passa pela autorização do Império
para que os judeus retomassem as suas peregrinações para a região, o que não
era feito desde a expulsão no ano 70 da presente Era. E chega até o período das
conquistas árabes, o domínio persa e seguido do período muçulmano.
Da minha pesquisa do mestrado resgato
o seguinte trecho:
Era um grupo pequeno [judeus cabalistas], que atraíra apenas 9 mil
dos 175 mil judeus residentes na Palestina nos anos de 1920 (Armstrong, p.
276-277). [Edward] Said também aponta números precisos em período anterior a
isso: ‘Segundo fontes israelenses, não havia mais do que 24 mil judeus na
Palestina em 1822, menos de 10% da população total, majoritariamente árabe” (p.
10). Para os anos mais recentes, Said aponta: ‘[...] em 1931 a população
judaica era de 174.606 pessoas entre um total de 1.033.314; em 1936 o número de
judeus subiu para 384.078 entre 1.366.692; e em 1946 eles eram 608.225 numa
população de 1.912.112” (The
Anglo-Palestine Yearbook 1947-8, p. 33, apud Said p. 13).’. (Paganelli,
2014, p. 88).
Os
persas invadiram Jerusalém em 6 de maio de 614 e atearam fogo às edificações
locais (Mansir, 1999, p.
203), algumas do tempo de Constantino.
Houve um massacre da população cristã, confirmado pela arqueologia, que mostra
valas comuns no período que durou de 614 a 628 (Avni, 2010, p. 35). Estima-se
dez mil mortos, o equivalente ao total da população da cidade à época, o que
nem mesmo fez do grupo cristão o minoritário em Jerusalém (Avni, 2010, p. 44).
Persas e bizantinos disputaram por
anos o controle de Jerusalém. Comandados pelo rei persa Chosroes Anushirvam, o
avanço contra a presença bizantina se deu pela Síria, descendo contra
Jerusalém. O cerco de 21 dias prosperou. Uma balista abriu passagem no muro e
as tropas sassânidas, o império persa pré-islâmico, a invadiram em 614. O que
veio pela frente foi uma ampla devastação.
Novamente, sob mãos bizantinas em 628,
Jerusalém em breve seria cercada até que caísse sob novo controle, dessa vez
pelos árabes. O avanço muçulmano começou pela tomada de Gaza na costa do
Mediterrâneo e cidades menores, onde havia população árabe descontente com a
perda de apoio pela administração bizantina (Wilken, 1988, p. 234). Com o apoio
obtido com essa população, a estratégia de avanço para conquistas maiores foi
refinada e o caminho para Jerusalém foi facilitado. Em julho de 637 os
exércitos árabes a alcançaram. Isolado, o bispo Sofrônio, um tipo de “prefeito”
de Jerusalém, negociou com as tropas e rendeu-se.
A rendição assinada entre Sofrônio e o califa
Rashidum Omar ibn al-Khattab, ou simplesmente Omar, garantia a manutenção do
roteiro sagrado dos cristãos para igrejas, mosteiros e tudo o mais. Aos judeus
foi oferecida nova condição de permanência e segurança na região.
Retornando
a Palestina
Novos problemas no texto surgem quando
o autor registra que “O termo “Palestina” foi simplesmente uma designação
genérica para a terra de Israel, criada pelo imperador romano Adriano (76-138
d.C.), que era um inimigo ferrenho do Deus de Abraão, Isaque e Jacó e dos
judeus”. Mas logo em seguida parece se confundir ao afirmar que “O nome
“palestinos” surgiu (sic) a partir de
1964, quando o Alto Comissariado da Palestina solicitou à Liga Árabe a fundação
de uma Organização Para a Libertação da Palestina (OLP).” A primeira informação
está correta, segundo um amplo consenso; a segunda é fruto de um preconceito cada
vez mais presente entre grupos sionistas mais aguerridos. Embora haja vários
documentos e evidências de toda natureza (histórica, arqueológica, econômica,
literária etc.) em favor da existência da Palestina, com sua cultura, história
e tudo o mais, a ironia é que o negacionismo à designação “Palestina” se tornou
o objetivo de um esforço internacional para apagar a memória dos palestinos ou
da população que vive há séculos na região. Ironia maior foi um jornal chamado The Palestine Post, fundado pelo judeu
(!) Gershon Agron,
em 1932, ter anunciado a “criação” do moderno Estado de Israel. Se nem a
Palestina nem os palestinos existiram historicamente antes de 1964, como alega
o texto, por que um judeu usaria justamente esse nome em seu próprio jornal em
1932?
Imagem da primeira página do The Palestine Post, 16.05.1948, um dia
após o anúncio da independência, feito por David ben Guryon
Encaminhando-se para o final do texto, o autor
dá, finalmente, uma nota interessante, mas que possui equivalente do lado judeu,
o que anula o seu argumento. Ele menciona o semanário egípcio El Mussawar que
escreveu: “A criação de uma nação palestina é o resultado de um planejamento
progressivo, pois o mundo não admitiria uma guerra de cem milhões de árabes
contra uma pequena nação israelense”, conforme informação da obra de Rudolf
Pfisterer. E acrescenta citação de “Zuheir Mohsen, um dos mais importantes
representantes da OLP”: “Não
existe um povo palestino [...]. Falamos da existência de uma identidade
palestina unicamente por razões políticas e estratégicas, pois é do interesse
nacional dos árabes contrapor a existência dos palestinos ao sionismo”.
Aqui temos novamente uma
confusão flagrante entre conceitos étnicos e conceitos político-ideológicos,
confusão que não pode existir, pois contamina o diálogo e atrapalha a
compreensão dessa questão que envolve vidas humanas inocentes, de ambos os
lados. O uso interesseiro e tendencioso que uma liderança faz de uma população,
manobrando-a, usando-a para os seus fins, apenas confirma a existência dessa
população (independente do nome que a caracterize) e revela a fragilidade do
argumento; nós, como cristãos, deveríamos nos colocar em defesa dessa população,
não acentuar uma já delicada situação de segregação e massacres.
Por que os palestinos
incomodam tanto muitos evangélicos norte-americanos e brasileiros? Por que a
tentativa de críticas ao Governo de Israel é rigorosamente rotulada de “antissemitismo”
e o mesmo recurso contra toda a população palestina não é vista como genocídio
cultural ou qualquer outro rótulo pejorativo e criminalizante?
Procurando o equilíbrio
na questão, esse argumento de que os palestinos foram criados como “recurso
político” para lutar por possessões territoriais se desfaz se aplicarmos o
mesmo critério para o outro lado, o lado israelense. Assim como a alegada criação
de “palestinos” para uso político, os judeus também têm entre a sua sociedade
(e não poucos!) aqueles que consideram o sionismo um recurso tático à religião
antiga e ao inconsciente coletivo do Ocidente para seus fins políticos, ideológicos,
além de outros mais. O mesmo podemos dizer das questões bélicas envolvendo
Israel e seu Exército. Há judeus (rabinos incluídos) que não concordam com a
associação entre a histórica bíblica e as promessas de Deus com o uso
indiscriminado da força militar e das guerras para o cumprimento dos planos que
somente Deus deveria fazer cumprir, e isso não sendo feito às custas da morte
de outras populações.
A ideia defendida no texto,
de um Deus belicoso como no Antigo Testamento não parece refletir o espírito de
Cristo, conforme lemos nos Evangelhos – e penso que cristãos não podem se
enganar lendo o AT por si, mas precisam se apoiar nas interpretações que foram
dadas pelos autores do NT. Esse equívoco hermenêutico parece ter sido o mesmo
cometido pelos judeus nos tempos de Jesus, levando-os a criar expectativas incompatíveis
e irreconciliáveis com as propostas de paz e harmonia feitas pelo Senhor, que
disse que seu Reino não era deste mundo, de modo que o seu Reino não deveria
ser defendido pelos meios comuns, a guerra, no caso. Diante de Pilatos e
Herodes estava Jesus dando exemplo gritante de que as coisas haviam mudado.
A essa altura da peça literária lemos
ainda que “A Margem Ocidental do Jordão e Gaza estavam sob domínio árabe de
1948 a 1967, ou seja, nas mãos de jordanianos e egípcios. Se naquela época
houvesse uma “questão palestina”, como a conhecemos hoje, por que não lhes foi
concedido um Estado quando essa região estava sob domínio árabe? Simplesmente
porque os “palestinos” nunca foram reconhecidos como um povo autônomo, mas
sempre foram considerados árabes jordanianos, sírios ou de outras
nacionalidades!”, afirma.
Novamente temos aqui um anacronismo flagrante que
já revelei em outros textos, como na recente resposta ao outro professor “anti-palestinos”
(já que não se dispõe de um termo equivalente a antissemita). Naquela outro
texto, rebati a declarações de mesma natureza, que valem reproduzir: quando e
onde existiu um país árabe chamado Palestina, e quais eram suas fronteiras e
sua bandeira antes de 1948? E por que a Jordânia dominou a Cisjordânia e metade
de Jerusalém durante 19 anos (1948-1967) e não fundou na época um estado
palestino?”. Oswaldo Truzzi, autor de Patrícios: Sírios e libaneses em São Paulo (1997),
indica que as relações sociais no Oriente Médio não são iguais às da Europa no
mesmo período quando os judeus migraram (fizeram a aliah) para a Palestina. Fronteiras rigorosamente delimitadas
criando “Estados soberanos coexistentes, mas em competição” (Ferguson, 2018, p.
111), é fruto da Paz de Augsburgo, reafirmada pela Paz de Vestfália um século
depois.
O que marcava os territórios entre
diferentes etnias árabes no Oriente Médio não era o mesmo modelo nem o mesmo rigor
europeu nessas questões sociais, territoriais e políticas. É anacronismo fazer
tais exigências e essas comparações. E é completamente descabido cobrar de uma
cultura os mesmos aspectos e especificidades de outra. Exigir que palestinos apresentem
bandeira, certidão de nascimento, data de fundação etc., é requerer desses
povos um modelo social, jurídico, econômico e político estranho aos seus
costumes e tradições seculares na região até o século XX. Os judeus migrados
para a Palestina sim, tinham essa noção, porque vinham da Europa, onde esse
modelo era adotado. Aliás, esse é um dos (muitos) motivos do conflito:
segregação de povos que estavam estabelecidos há séculos num território amplo
com sua cultura local. Mesmo assim, diante
da presença dos judeus se ampliando, os árabes instavam o estabelecimento de um
governo democrático e a entrada como membro pleno da Liga das Nações desde dois
anos antes da fundação do Estado de Israel.
Assim, quando respondi às oito perguntas sobre
a Palestina no texto anterior, disse: “(1) quando
foi fundada a palestina e por quem?”: modelos tribais étnicos arcaicos não
exigem fundação oficial nem cerimonial; os povos estavam lá e isso bastava. “(2) quais eram suas fronteiras?”:
eram estabelecidas por acordos informais, assim como os vemos, por exemplo, no
Antigo Testamento (estou fazendo uma generalização para efeitos comparativos!).
“(3) qual era sua capital?”: uma pergunta que não faz sentido dentro do modelo
em vigor É como perguntar qual a capital dos Tupinambás? Qual a Capital dos
Navajos? e mesmo assim, na citação que fiz de Muqadassi, isso aparece
claramente. “(4) como se chamavam suas principais cidades?”: se ler a minha
tese (2018) sobre o turismo evangélico para a região poderá conferir o nome de
algumas cidades, inclusive aprender sobre o comércio, turismo, cotidiano, rotas
ferroviárias etc. na Palestina do período. “(5) quais eram suas bases
econômicas?”: agrícola, comércio e turismo na virada para o século XX. “(6)
quais eram suas formas de governo?”: Otomano até o final da Guerra e Mandato
Britânico após ela. “(7) quem eram seus líderes antes do egípcio Yasser
Arafat?”: o reconhecendo de um líder confirma a existência de um povo! Então
fica subentendido existirem os palestinos, uma cultura e tudo o que foi negado
anteriormente. “(8) que idioma falavam?”: é preciso
responder a isso? Quem não sabe ter sido o árabe? Aí estão oito respostas a
questões que têm sido levantadas com a finalidade de fazer uma limpeza étnica
ou genocídio cultural, conceito usado na sociologia para designar a tentativa e
os esforços para apagar a memória de um povo, sua cultura, hábitos, resquícios
etc.
Como havia adiantado acima, o
fechamento do texto em questão procura fazer certas profecias do Antigo
Testamento se cumprirem contra os palestinos de hoje, depois de tê-los
associado aos edomitas. O texto pergunta: “haveria algum propósito na presença
de povos antigos, que foram inimigos de Israel no passado, na terra de Israel,
em oposição aos israelenses? Será que temos aqui uma repetição da presença dos
cananeus e filisteus durante a conquista da terra, como um propósito divino – a
fim de, como foi dito, treinar os
israelitas na guerra, bem como prová-los na obediência aos mandamentos do
Senhor (Jz.3:1-4)?” (ênfase acrescentada por mim).
De fato, Israel tem usado o massacre
das populações palestina – incluindo cristãos que lá estão, como laboratório
para o desenvolvimento da sua indústria bélica. Isso se demonstrou, por
exemplo, no documentário The Lab (2013)
de Yotam Feldman. Cristãos
que oram pelas vitórias de Israel em guerra contra palestinos deverão repensar
os galardões que esperam receber. Anglicanos, batistas como o autor do texto,
pentecostais, católicos, luteranos, metodistas... sinceramente não compreendo
esse estranho cristianismo. A ideia contida em textos como Isaias 2.3 e
Zacarias 8.22, de muitos povos em Jerusalém buscando a palavra do Senhor certamente
não se refere ao atual turismo religioso para o país, uma vez que se busca não
a Palavra de Deus, mas entretenimento religioso, comércio e lazer. Tais
passagens também reforçam a ideia de que a exclusividade na terra é utópica e
irreal.
Para o autor, a profecia de Isaías
63:1-2 contra Edom se aplica (se cumpre nos) aos palestinos, porque há milênios
os edomitas foram forçados a instalarem-se na região palestina. O sangue nas
vestes do Messias, que o apóstolo João disse ser Jesus com vestes manchadas no
conflito contra as nações rebeldes (não os palestinos especificamente), também
tem o sentido distorcido no texto. Ele já havia escrito que Edom significa
“vermelho” e agora faz o sangue dos palestinos manchar as vestes de um Jesus
que o texto chama “Messias guerreiro”, insistindo num comportamento
radicalmente contrário ao que Jesus ensinou, mas completamente alinhado à
ideologia do sionismo revisionista, especificamente a ideologia de Wladimir Jabotinsky, famoso guerrilheiro judeu-russo, conforme exposto
na obra A Muralha de Ferro, do judeu iraquiano Avi Schlaim. Jabotinsky formou o
Corpo de Muleiros de Sião, em 1920, grupo que apoiava tropas aliadas realizando
operações tais como o Hamas palestino realiza hoje.
Descontextualizando as profecias para fazê-las se
cumprir contra os palestinos, ainda se pode ler que “Edom tipifica o mundo
rebelde, implacavelmente hostil para com o povo de Deus (Amós 1:11), bem como o último inimigo a ser vencido pelo
Messias” (ênfase acrescentada por mim) e “O juízo sobre Edom faz parte da
vingança divina sobre as nações que ao longo dos séculos se levantaram
injustamente contra Israel. Ora, dizer que Israel foi “injustamente” atacado é
abandonar o texto bíblico completamente, haja vista que em não raras ocasiões,
os próprios profetas advertiram que o Senhor movia nações no tabuleiro
internacional para atacarem Israel e Judá por seus próprios pecados, não
injustamente. Deus chamou comandantes estrangeiros de seus “servo” (Jr 27.6) e “ungido”
(Is 45.1); como o texto pode fazer uma afirmação dessas? Também constou dos
oráculos dos profetas o modo como o juízo de Deus sobre as nações se realizou
não porque elas “se levantaram injustamente contra Israel”, mas porque foram
infiéis a Deus no seu procedimento particular, como a idolatria, o sacrifício
de crianças inocentes, entre outros motivos.
Considerações
finais
O encerramento do texto é feito com imagens
apocalípticas, como não poderia deixar de ser, insinuando que Deus vingará
sempre os inimigos de Israel, no caso os palestinos, mas nunca fará o que está
claro em todo o Novo Testamento: que Deus, por meio de Cristo, está reconciliando
o mundo consigo. Ademais, o próprio Apocalipse tem sido apontado em estudos
mais recentes como um livro em que devemos ver o papel missionário e
evangelístico, não simplesmente condenatório e segregacionista. [2]
Insisto que considero desumano e pouco cristão negar a um povo a sua
identidade, e mais, o direito de defender a sua existência. Em relação aos
judeus, chamam isso de antissemitismo; e em relação aos palestinos? Nessa questão
deve dar prioridade ao envolvimento de vidas humanas acima de tudo e de
cristãos por consequência. Um cristãos deve focalizar esses pontos, separando
ideologias perniciosas dos valores que a fé deve promover.
Em sociologia, tentar apagar a memória de um povo chama-se genocídio, e
como disse, militantes mais aguerridos insistem na tecla do antissemitismo sem
que se faça uma autocrítica sobre as consequências do posicionamento de Israel contra
palestinos, e pior, cristãos palestinos. Confundir o Estado de Israel com o
Israel do AT é um imenso equívoco. Uma coisa é a comunidade de fé que Jesus
veio salvar; outra é uma unidade política constituída de pessoas que em sua
maioria sequer professam uma fé. Como mencionei, um judeu criou um jornal à
época chamado The Palestine Post! Não
havia “Palestina”? A Organização Sionista tinha um órgão chamado Anglo-Palestine Company, fundada em Jafa
em 1903 pelo Jewish Colonial Trust,
de Londres, iniciado por Herzl. Não havia “Palestina” nem “palestinos”?
(Gunneweg, 2005, p. 326).
Sobre a imprensa chamada “evangélica” (em geral), gostaria de
deixar registrado que ela parece seguir o mesmo modelo tendencioso, parcial e
interesseiro nas suas publicações, tal como a imprensa em geral. Há menos de um
ano ofereci para o mesmo portal onde o autor publica os seus textos a
possibilidade de publicarem artigos sobre o outro lado da história, a fim de
informar a comunidade evangélica sobre aspectos bíblicos, sociais, teológicos e
outros, mas sem o viés judaizante. Não tive resposta. Há algumas semanas
apresentei a mesma proposta para o jornalista de outro veículo, e o mesmo disse
que “pautas” dessa natureza não entram.
Qual é o medo dessa “imprensa evangélica”? Ela teme
perder acessos e se descapitalizar? Então não é uma mídia “gospel”, do
evangelho primeiro ou pleno, que guia à fé cristã, o que é lamentável pelo
nível de desinformação que ela promove, além de servir a interesses bastante
distantes da verdade em sua acepção mais ampla, como cabe a cristãos.
De fato, não há apoio claro e sério
no Novo Testamento para esse apoio. Os apóstolos não escreveram que essa é a
missão da Igreja. Há pessoas querendo fazer o trabalho de Deus, e receio que
não colherão bons frutos. Deus é quem irá tratar com Israel. O nosso papel como
agentes da reconciliação é de neutralidade. Há hoje meio bilhão de árabes
esperando a pregação do Evangelho. Jesus está se revelando a eles por sonhos,
porque elegeram como alvo das missões os pouco mais de 14 milhões de judeus que
não querem saber de Jesus. Claro que serão salvos, mas e o arrependimento que a
fé cristã preconiza? Ele não faz mais parte da fé cristã?
Mas há mais coisas envolvidas
nisso. Há dinheiro, a ideia de prosperidade que o cristão alimenta. E aí,
distorcem textos sobre prosperidade, como “abençoarei os que te abençoarem”. Eu
mantenho contato com líderes judeus e eles dizem que essa interpretação que a
Igreja faz do texto é absurda! Judeus veem nessa promessa o papel espiritual,
não material. É uma vergonha para nós materializar o que eles veem como
espiritual.
Que isso não ganhe forma nem força na Igreja brasileiros,
já bastante afetada pela cultura circundante e sem a necessidade de servir de
massa de manobra para os interesses os mais diversos.
Notas e referências
[1] Ao saírem do Egito, o Senhor não permitiu a passagem
mais curta pela região costeira do Mediterrâneo: “Quando o faraó deixou o
povo sair, Deus não o conduziu pelo caminho da terra dos filisteus, embora
fosse mais curto, pois disse: Para que, caso enfrente guerra, o povo não se
arrependa e volte para o Egito” (Êx 13.17). Os filisteus ocupavam uma faixa de
terra quando Israel avançou para a sua ocupação. Estavam lá não se sabe há
quanto tempo, vindos do que hoje chamamos Ilha de Creta, a oeste do Mar
Mediterrâneo. Jeremias, o profeta, chamou de Ilha de Caftor (Jr 47.4). Caftor é
o local de onde descendem os caftorim, filhos de Mizraim (atuais egípcios, que
ainda usam o nome). Comentando este versículo de Jeremias, Adam Clarke (1831)
associou Caftor a Creta, Chipre ou a um possível distrito na Costa do
Mediterrâneo ou próximo a Capadócia. Amós também se referiu aos filisteus como
originários de Caftor, e acrescentou que o próprio Deus os tirou da ilha
(provavelmente, conduzindo-os a Canaã): “Diz o Senhor: Ó israelitas, não sois
vós para comigo como os etíopes? Por acaso não tirei Israel da terra do Egito,
e os filisteus de Caftor, e os sírios de Quir?” (Am 9.7). Sendo assim,
originalmente os filisteus não podem ser associados aos árabes, como se faz hoje.
[2] Como exemplo, menciono a obra de Grant R. Osborne, Comentário Exegético do Apocalipse. São
Paulo; Edições Vida Nova, 2014.
AVNI,
Gideon. The Persian Conquest of Jerusalem (614 c.e.) — An Archaeological
Assessment. In Bulletin of the American
Schools of Oriental Research, no 357 (Fev/2010), p. 35-48.
Publicado por The American Schools of Oriental Research. Disponível em
http://www.jstor.org/stable/27805159 e acessado em 21.03.2016.
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