terça-feira, 2 de junho de 2020


SOBRE RACISMOS E INTOLERÂNCIAS

A intolerância, mesmo invisível, vem fazendo um estrago 
De início, eu não penso que deva apresentar a minha opinião sobre tudo. Não deve colar em mim essa obrigação de dar palpite sobre tudo o que sai na imprensa, sobre cada passo dos políticos nem qualquer outro dever programático. Isso é repugnante, gente que se acha especialista em toda matéria, desde fonte renováveis de energia até mecanismos políticos e tendências eleitorais, passando, é claro, por táticas de futebol e palpites sobre doutrinas teológicas.

No entanto, aquilo que é do meu conhecimento, sim. Sinto-me em condição de dar uma palavra sobre racismos, intolerâncias, radicalismos, polarizações, nacionalismos: isso é coisa de gente que se apequena diante da grandeza da humanidade que temos em Cristo, mas o Cristo simples, despido das colorações ideológicas, militantes, partidaristas.

“Ah! Isso é reducionismo”, alguém dirá. Claro que alguém dirá! Mas qual é a “melhor solução” que a sua ideologia nos dá? E a sua “filosofia de vida”, a sua cosmovisão, tem ajudado em quê? O seu posicionamento no espectro político tem permitido a outros expressarem-se e orientarem a massa agitada? Penso que não.

A locução “em Cristo”, popularizada por Paulo, coloca um ponto final no divisionismo, na intolerância, dos preconceitos que temos visto do Oriente ao Ocidente, de Norte ao Sul. Como? Pelo simples fato de que estar “em Cristo” coloca um fim às distinções raciais, religiosas, culturais e sociais. Mas é óbvio que não é qualquer Cristo, pois até as denominações testificam que há divisões internas. Somente um Cristo compreendido de joelhos, não com o nariz empinado, é o Cristo pacificador, reconciliador. Um Cristo de quem abre mão de ter razão.

Somente “em Cristo” há nova vida para todos, pois “nele” é “onde não há grego, nem judeu [distinções étnicas], circuncisão, nem incircuncisão [distinções religiosas], bárbaro, cita [distinções culturais], servo ou livre [distinções sociais]; mas Cristo é tudo em todos [reconciliação ampla]” (Cl 3.11).  

Cristo é um Deus que interessa a todo ser humano em conflito! “Em Cristo” não há cor de pele, mais ou menos educação, melhores ou piores condições financeiras. “Em Cristo nós olhamos para o mesmo lugar, tendo o mesmo sentido e um mesmo parecer (1Corintios 1.10).

Cristo também não estabeleceu uma geografia para os seus e outra para os estrangeiros, para os imigrantes que buscam refúgio. Não há um território que devamos defender, porque “do Senhor é a terra, o mundo, e os que nele habitam” (Salmo 24.1). Ele nos deu a terra para dela tirarmos o nosso sustento.
Cristãos que encontraram-se pessoalmente com Cristo não lutam por um pedaço de chão; não há para a Igreja uma “terra santa”, nem aqui, nem em lugar algum do planeta, porque a nossa esperança está para além das possessões terrenas e nos damos muito bem com isso (Hebreus 11.10). O nosso lugar é onde Cristo está, porque somente “em Cristo” nós somos.
Por fim, aos que ainda assim possam chamar-me “isentão”, dizendo que não podemos nos calar diante das injustiças sociais que bem conheço, tomo (novamente) o exemplo do meu Senhor, que diante da necessidade de usar os seus direitos, “não abriu a sua boca” e “guardou silêncio” (Isaias 53.7; Mateus 27.13-14 e 26.63). Há a hora certa para falar e um dos motivos pelos quais a Igreja tem perdido a oportunidade de ser ouvida é porque fala quando não precisa e cala-se quando é necessária.

Cristo soube separar o que era valioso e as causas pelas quais devemos lutar. Deixou com César o que lhe pertence e orientou-nos a ocupar-nos com o que é necessário dentro da alçada de cada um: “Marta! Marta! Você está preocupada e inquieta com muitas coisas; todavia apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada. (Lucas 10.41-42).

O posicionamento do cristão frente ao que lhe compete determina o modo como frutificará os seus esforços (Romanos 12.6-8).

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terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Por que os palestinos incomodam tanto? Contraponto ao texto “Quem são os palestinos?”, de Alexandre Dutra


por Magno Paganelli


Em outubro de 2019, produzi dois textos (o primeiro e o segundo) sobre o lado pouquíssimo explorado da questão entre israelenses e palestinos (IP) na perspectiva cristã da Igreja evangélica brasileira. Agora surge novo texto, de outro autor, com o título objetivo: “Quem são os palestinos?”. O seu autor, diferentemente do autor dos textos aos quais fiz referência, é meu conhecido. Alexandre Dutra, pastor batista, é mestre em Literatura judaica pela USP e diretor do Ministério Amigos de Sião, trabalho dirigido à evangelização e a aproximação com os judeus a fim de testemunhar de Jesus para aquele povo.
Alexandre e eu já nos conhecemos. Participamos de um programa na RIT TV, o Vejam Só, em meados de 2014, discutindo o conflito em questão. Depois, na ocasião do meu doutoramento sobre o turismo para Israel e Palestina, eu o entrevistei por quase duas horas, uma entrevista bastante rica e reveladora. Tivemos a oportunidade de realizar alguns trabalhos juntos, notadamente na produção de dois textos, e tenho por ele apreço e respeito, de modo que aqui serão discutidas apenas as ideias contidas em seu texto. Elas refletem o que pensam milhões de cristãos no Brasil, mas que recebem essas ideias da Igreja norte-americana e as reproduzem sem uma crítica de qualquer natureza.
Começando com o subtítulo, ao dizer que os palestinos são “os novos filisteus em Israel”, o texto remete a atenção do leitor para um antigo inimigo dos judeus, conduzindo o sentimento desse leitor para o que se insinua em quase todo o texto, de que os habitantes da região costeira sempre serão inimigos dos judeus. A mesma intenção vejo quando se comenta os “aspectos geográficos” e afirma que eles são “idólatras” (uma característica religiosa, não geográfica). O povo de Israel no Antigo Testamento (AT) dificilmente se viu livre de idolatria, desde a sua inserção no território prometido e pela monarquia adentro! A afirmação simplesmente procura pintar os palestinos (via filisteus) como radicalmente irreconciliáveis com o povo do AT, o que não confere com toda a realidade; os filisteus formaram a guarda pessoal do rei Davi, além de os antigos judeus recorrerem aos filisteus para afiarem suas armas e ferramentas agrícolas. É preciso destacar esses pontos positivos.
Quem são os filisteus? O texto diz que o nome significa “errantes, e ou forasteiros” (sic), sem dar a fonte, o que põe em dúvida a declaração do autor. J. D. Douglas (1995, p. 629) afirma que “os filisteus são pela primeira vez mencionados pelo nome (prst) nos anais de Ramsés III, durante seu quinto ano de reinado (1185 a.C.)” e sabe-se, como o pr. Alexandre bem demonstra, que “são povos do mar”, vindos das ilhas do Mediterrâneo e fizeram parte do grande movimento de povos que saíram da área geral do Mar Egeu cerca dos anos 1200 a.C., tendo chegado à costa mediterrânea do atual território palestino ainda antes de os hebreus saírem do Egito.
A fim de demonstrar a incerteza em torno da origem dos palestinos, o autor diz que “a origem da Filístia até hoje é incerta e se constitui em um mistério para a arqueologia”, afirmação que autocontradiz a interessante demonstração que ele faz da ocupação do território na Antiguidade. Noto, ainda, imprecisão sobre o que nesta indagação ele quer dizer por “Filístia”. Se for a região, não resta dúvida da sua posição geográfica, o que derruba a tentativa de argumentação do autor ao dizer que é u mistério para a arqueologia. Se for o povo filisteu, estranha o fato de ele mesmo ter indicado a origem (“povos do mar”). Se faltam evidências arqueológicas, a minha citação acima demonstra que o texto carece de pesquisa e fontes (eu teria outras para citar). Portanto, a declaração não tem função dentro da argumentação.
O problema maior do texto começa à altura do tópico “A entrada dos edomitas na equação”. A função do tópico não é outra senão vincular o cumprimento de profecias que serão apresentadas na parte final do seu ensaio, profecias às quais o autor procura fazer associação com os atuais árabes. Isso provoca no leitor a sensação de que os antigos edomitas e os modernos árabes sempre são intrusos na região. Ele diz: “[...] a fim de esclarecer a origem do atual povo palestino, é chamado biblicamente de edomita”. E como os edomeus foram parar na região palestina? O autor diz: “O cativeiro babilônico e a questão da desertificação dos lugares conquistados se tornou um fator determinante para a vinda dos edomitas para a região arrasada de Israel”. Isso reforça a ideia de uma invasão estrangeira em terras privativas dos judeus, que o texto pretende demonstrar.

Judeus proprietários “exclusivos” da terra?
Aqui caberá uma nota minha sobre a ideia de exclusividade de Israel na região. Muitos pastores e seus discípulos evangélicos acreditam, equivocadamente, que há um direito exclusivo e incontornável dos descendentes de Abraão dentro de certos limites geográficos no Oriente Médio. Mas essa interpretação decorre de uma leitura apressada dos textos, regada a uma boa dose de ideologia política, interesses econômicos e muita desinformação. O pacto da terra prometida a Abraão não dá direito inalienável aos “descendentes” de sangue de Abraão. Jesus já havia dito que até de pedras Deus pode suscitar descendentes físicos de Abraão e Paulo, em Gálatas 3.16, já demonstrou que o pacto se cumpriu na pessoa de Jesus, não da comunidade judaica. O outro pacto de um trono, feito a Davi, Pedro demonstrou igualmente ter se cumprido em Jesus (At 2.25-36). Não haverá uma monarquia futura por meio dos descendentes judeus, pois ela já teve início no Calvário com um rei manso, não um guerreiro militar.
É pertinente também destacar a questão do estrangeiro na questão da terra e o faço recorrendo a textos do meu livro Milênio (2014). Canaã sempre esteve ocupada. Após o chamado do Senhor, Abraão peregrinou na terra ocupada por diversos povos. Seu bisneto José foi para o Egito e levou a família para o país. Passados quatrocentos anos, os seus descendentes (hebreus) saíram do Egito rumo à terra prometida. Eles não saíram sós, levaram consigo grupos minoritários: “Também subiu com eles uma grande mistura de pessoas e uma grande quantidade de gado, em rebanhos e manadas” (Êx 12.38). Neste mesmo capítulo de Êxodo 12, se diz que aos estrangeiros foi proibido tomar parte da celebração da páscoa; mas, no v. 49, lemos: “Haverá uma só lei para o natural da terra e para o estrangeiro que estiver vivendo entre vós”. [1]
O tema do pobre, da viúva, do órfão e do estrangeiro é dominante no AT e entrou no Novo Testamento (NT) por meio da epístola de um judeu, o apóstolo Tiago (Tg 1.27). Em Israel havia leis para os estrangeiros que peregrinassem em seu território (Levíticos 17.8,10,13,15; 19.34; 20.2; 22.18). Cito aqui o texto de Levíticos 19.34: “O estrangeiro que viver entre vós será como um natural da terra. Devereis amá-lo como a vós mesmos, pois fostes estrangeiros na terra do Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus”.
Além das leis de Levítico, foram dados mandamentos em Êxodo 22.21-23, que orientavam os judeus no trato com os estrangeiros: “Não maltratem nem oprimam o estrangeiro, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Não prejudiquem as viúvas nem os órfãos; porque se o fizerem, e eles clamarem a mim, eu certamente atenderei ao seu clamor”. Essa preocupação de Deus com os estrangeiros se deve, como diz o texto, a dois fatos. Primeiro, ao fato de que o próprio Israel havia sido estrangeiro no Egito e lá sofrera intenso período de escravidão, após a morte de José. E segundo, ao fato de que “do Senhor é a terra”: “Ao Senhor pertencem a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele habitam” (Sl 24.1; 89.11).
Há muitas passagens na Bíblia afirmando que o Senhor é dono da terra, e autores bíblicos atribuem a Ele essa propriedade. A mentalidade dos povos do Oriente Médio com relação à posse da terra difere muito da nossa maneira de ver a questão. A terra é a fonte dos recursos, é de onde se tira o sustento, e o próprio ser humano veio dela e para ela voltará (“ao pó tornarás”). O Senhor dono da terra quer que seus filhos vivam nela harmoniosamente, não que se matem por um pedaço de chão. O registro do sermão profético de Jesus em Mateus 24, lemos a palavra ethnē (de onde temos etnia), povos da terra, que nossas traduções verteram como “nações”. Jesus jamais ensinou a exclusividade da terra aos judeus e nem Abraão, que recebeu a promessa da terra, fixou-se nela como proprietário. Antes, vagueou como peregrino, porque esperava a cidade celestial (Hebreus 11.8-10), de modo que a luta pela terra hoje não encontra qualquer apoio honesto nas Escrituras segundo as lentes do Novo Testamento. E cristãos não devem cair no canto de sereia de interpretar a Escritura do AT sem a ler com os autores apóstolos.

“Quem conta um conto aumenta um ponto”
Agravando o tom do texto que estou contrapondo, o autor organiza as suas ideias para mostrar que esses idumeus/edomeus invasores permaneceram na terra até que os macabeus (ele coloca entre parênteses “judeus”, para reforçar o seu argumento) “obtiveram vitória sobre os idumeus, em 164 a.C.” – introduzindo o elemento bélico como maneira de se solucionar problemas no plano espiritual. De fato, se o texto fosse composto por um judeu sionista, vá lá. Mas isso causa estranheza por ser um texto cristão recorrendo a essa justificativa como a mais plausível da perspectiva da fé.
O novo tópico “Renascimento do termo Palestina” surge com a seguinte declaração: “Israel ficou sob dominação estrangeira até 1948 [...] Isto levou a terra de Israel a ter uma mistura de povos, além dos judeus é claro”. O que dizem os dados históricos sobre o período anterior à Declaração de Independência? Segundo as fontes israelenses pesquisadas por Edward Said (1935-2003), nascido em Jerusalém, os judeus eram minoria na região. A região foi ocupada por árabes em sua maioria com uma minoria de judeus. O próprio pastor Alexandre demonstrou que Jerusalém foi rebatizada por Adriano no ano 135, pois haviam sido expulsos no ano 70. A cidade foi também rebatizada como Bait-al-Makdis em árabe na idade Média, tendo sido descrita por um historiador árabe que viveu na região (Mukaddasi, 1890, p. 84) como uma grande cidade com clima agradável, onde “raramente neva”.
O Itinerário, de Mukaddasi hierosolomita (946 A.D.), seguramente é o mais informativo relato produzido no período sobre a região, a população e os costumes desde o início das peregrinações cristãs (séc. III-IV). Ele passa pela autorização do Império para que os judeus retomassem as suas peregrinações para a região, o que não era feito desde a expulsão no ano 70 da presente Era. E chega até o período das conquistas árabes, o domínio persa e seguido do período muçulmano.
Da minha pesquisa do mestrado resgato o seguinte trecho:

Era um grupo pequeno [judeus cabalistas], que atraíra apenas 9 mil dos 175 mil judeus residentes na Palestina nos anos de 1920 (Armstrong, p. 276-277). [Edward] Said também aponta números precisos em período anterior a isso: ‘Segundo fontes israelenses, não havia mais do que 24 mil judeus na Palestina em 1822, menos de 10% da população total, majoritariamente árabe” (p. 10). Para os anos mais recentes, Said aponta: ‘[...] em 1931 a população judaica era de 174.606 pessoas entre um total de 1.033.314; em 1936 o número de judeus subiu para 384.078 entre 1.366.692; e em 1946 eles eram 608.225 numa população de 1.912.112” (The Anglo-Palestine Yearbook 1947-8, p. 33, apud Said p. 13).’. (Paganelli, 2014, p. 88).

Os persas invadiram Jerusalém em 6 de maio de 614 e atearam fogo às edificações locais (Mansir, 1999, p. 203), algumas do tempo de Constantino. Houve um massacre da população cristã, confirmado pela arqueologia, que mostra valas comuns no período que durou de 614 a 628 (Avni, 2010, p. 35). Estima-se dez mil mortos, o equivalente ao total da população da cidade à época, o que nem mesmo fez do grupo cristão o minoritário em Jerusalém (Avni, 2010, p. 44).
Persas e bizantinos disputaram por anos o controle de Jerusalém. Comandados pelo rei persa Chosroes Anushirvam, o avanço contra a presença bizantina se deu pela Síria, descendo contra Jerusalém. O cerco de 21 dias prosperou. Uma balista abriu passagem no muro e as tropas sassânidas, o império persa pré-islâmico, a invadiram em 614. O que veio pela frente foi uma ampla devastação.
Novamente, sob mãos bizantinas em 628, Jerusalém em breve seria cercada até que caísse sob novo controle, dessa vez pelos árabes. O avanço muçulmano começou pela tomada de Gaza na costa do Mediterrâneo e cidades menores, onde havia população árabe descontente com a perda de apoio pela administração bizantina (Wilken, 1988, p. 234). Com o apoio obtido com essa população, a estratégia de avanço para conquistas maiores foi refinada e o caminho para Jerusalém foi facilitado. Em julho de 637 os exércitos árabes a alcançaram. Isolado, o bispo Sofrônio, um tipo de “prefeito” de Jerusalém, negociou com as tropas e rendeu-se.
A rendição assinada entre Sofrônio e o califa Rashidum Omar ibn al-Khattab, ou simplesmente Omar, garantia a manutenção do roteiro sagrado dos cristãos para igrejas, mosteiros e tudo o mais. Aos judeus foi oferecida nova condição de permanência e segurança na região.

Retornando a Palestina
Novos problemas no texto surgem quando o autor registra que “O termo “Palestina” foi simplesmente uma designação genérica para a terra de Israel, criada pelo imperador romano Adriano (76-138 d.C.), que era um inimigo ferrenho do Deus de Abraão, Isaque e Jacó e dos judeus”. Mas logo em seguida parece se confundir ao afirmar que “O nome “palestinos” surgiu (sic) a partir de 1964, quando o Alto Comissariado da Palestina solicitou à Liga Árabe a fundação de uma Organização Para a Libertação da Palestina (OLP).” A primeira informação está correta, segundo um amplo consenso; a segunda é fruto de um preconceito cada vez mais presente entre grupos sionistas mais aguerridos. Embora haja vários documentos e evidências de toda natureza (histórica, arqueológica, econômica, literária etc.) em favor da existência da Palestina, com sua cultura, história e tudo o mais, a ironia é que o negacionismo à designação “Palestina” se tornou o objetivo de um esforço internacional para apagar a memória dos palestinos ou da população que vive há séculos na região. Ironia maior foi um jornal chamado The Palestine Post, fundado pelo judeu (!) Gershon Agron, em 1932, ter anunciado a “criação” do moderno Estado de Israel. Se nem a Palestina nem os palestinos existiram historicamente antes de 1964, como alega o texto, por que um judeu usaria justamente esse nome em seu próprio jornal em 1932?

Imagem da primeira página do The Palestine Post, 16.05.1948, um dia após o anúncio da independência, feito por David ben Guryon

Encaminhando-se para o final do texto, o autor dá, finalmente, uma nota interessante, mas que possui equivalente do lado judeu, o que anula o seu argumento. Ele menciona o semanário egípcio El Mussawar que escreveu: “A criação de uma nação palestina é o resultado de um planejamento progressivo, pois o mundo não admitiria uma guerra de cem milhões de árabes contra uma pequena nação israelense”, conforme informação da obra de Rudolf Pfisterer. E acrescenta citação de “Zuheir Mohsen, um dos mais importantes representantes da OLP”: “Não existe um povo palestino [...]. Falamos da existência de uma identidade palestina unicamente por razões políticas e estratégicas, pois é do interesse nacional dos árabes contrapor a existência dos palestinos ao sionismo”.
Aqui temos novamente uma confusão flagrante entre conceitos étnicos e conceitos político-ideológicos, confusão que não pode existir, pois contamina o diálogo e atrapalha a compreensão dessa questão que envolve vidas humanas inocentes, de ambos os lados. O uso interesseiro e tendencioso que uma liderança faz de uma população, manobrando-a, usando-a para os seus fins, apenas confirma a existência dessa população (independente do nome que a caracterize) e revela a fragilidade do argumento; nós, como cristãos, deveríamos nos colocar em defesa dessa população, não acentuar uma já delicada situação de segregação e massacres.
Por que os palestinos incomodam tanto muitos evangélicos norte-americanos e brasileiros? Por que a tentativa de críticas ao Governo de Israel é rigorosamente rotulada de “antissemitismo” e o mesmo recurso contra toda a população palestina não é vista como genocídio cultural ou qualquer outro rótulo pejorativo e criminalizante?
Procurando o equilíbrio na questão, esse argumento de que os palestinos foram criados como “recurso político” para lutar por possessões territoriais se desfaz se aplicarmos o mesmo critério para o outro lado, o lado israelense. Assim como a alegada criação de “palestinos” para uso político, os judeus também têm entre a sua sociedade (e não poucos!) aqueles que consideram o sionismo um recurso tático à religião antiga e ao inconsciente coletivo do Ocidente para seus fins políticos, ideológicos, além de outros mais. O mesmo podemos dizer das questões bélicas envolvendo Israel e seu Exército. Há judeus (rabinos incluídos) que não concordam com a associação entre a histórica bíblica e as promessas de Deus com o uso indiscriminado da força militar e das guerras para o cumprimento dos planos que somente Deus deveria fazer cumprir, e isso não sendo feito às custas da morte de outras populações.
A ideia defendida no texto, de um Deus belicoso como no Antigo Testamento não parece refletir o espírito de Cristo, conforme lemos nos Evangelhos – e penso que cristãos não podem se enganar lendo o AT por si, mas precisam se apoiar nas interpretações que foram dadas pelos autores do NT. Esse equívoco hermenêutico parece ter sido o mesmo cometido pelos judeus nos tempos de Jesus, levando-os a criar expectativas incompatíveis e irreconciliáveis com as propostas de paz e harmonia feitas pelo Senhor, que disse que seu Reino não era deste mundo, de modo que o seu Reino não deveria ser defendido pelos meios comuns, a guerra, no caso. Diante de Pilatos e Herodes estava Jesus dando exemplo gritante de que as coisas haviam mudado.
A essa altura da peça literária lemos ainda que “A Margem Ocidental do Jordão e Gaza estavam sob domínio árabe de 1948 a 1967, ou seja, nas mãos de jordanianos e egípcios. Se naquela época houvesse uma “questão palestina”, como a conhecemos hoje, por que não lhes foi concedido um Estado quando essa região estava sob domínio árabe? Simplesmente porque os “palestinos” nunca foram reconhecidos como um povo autônomo, mas sempre foram considerados árabes jordanianos, sírios ou de outras nacionalidades!”, afirma.
Novamente temos aqui um anacronismo flagrante que já revelei em outros textos, como na recente resposta ao outro professor “anti-palestinos” (já que não se dispõe de um termo equivalente a antissemita). Naquela outro texto, rebati a declarações de mesma natureza, que valem reproduzir: quando e onde existiu um país árabe chamado Palestina, e quais eram suas fronteiras e sua bandeira antes de 1948? E por que a Jordânia dominou a Cisjordânia e metade de Jerusalém durante 19 anos (1948-1967) e não fundou na época um estado palestino?”. Oswaldo Truzzi, autor de Patrícios: Sírios e libaneses em São Paulo (1997), indica que as relações sociais no Oriente Médio não são iguais às da Europa no mesmo período quando os judeus migraram (fizeram a aliah) para a Palestina. Fronteiras rigorosamente delimitadas criando “Estados soberanos coexistentes, mas em competição” (Ferguson, 2018, p. 111), é fruto da Paz de Augsburgo, reafirmada pela Paz de Vestfália um século depois.
O que marcava os territórios entre diferentes etnias árabes no Oriente Médio não era o mesmo modelo nem o mesmo rigor europeu nessas questões sociais, territoriais e políticas. É anacronismo fazer tais exigências e essas comparações. E é completamente descabido cobrar de uma cultura os mesmos aspectos e especificidades de outra. Exigir que palestinos apresentem bandeira, certidão de nascimento, data de fundação etc., é requerer desses povos um modelo social, jurídico, econômico e político estranho aos seus costumes e tradições seculares na região até o século XX. Os judeus migrados para a Palestina sim, tinham essa noção, porque vinham da Europa, onde esse modelo era adotado. Aliás, esse é um dos (muitos) motivos do conflito: segregação de povos que estavam estabelecidos há séculos num território amplo com sua cultura local. Mesmo assim, diante da presença dos judeus se ampliando, os árabes instavam o estabelecimento de um governo democrático e a entrada como membro pleno da Liga das Nações desde dois anos antes da fundação do Estado de Israel.
Assim, quando respondi às oito perguntas sobre a Palestina no texto anterior, disse: “(1) quando foi fundada a palestina e por quem?”: modelos tribais étnicos arcaicos não exigem fundação oficial nem cerimonial; os povos estavam lá  e isso bastava. “(2) quais eram suas fronteiras?”: eram estabelecidas por acordos informais, assim como os vemos, por exemplo, no Antigo Testamento (estou fazendo uma generalização para efeitos comparativos!). “(3) qual era sua capital?”: uma pergunta que não faz sentido dentro do modelo em vigor É como perguntar qual a capital dos Tupinambás? Qual a Capital dos Navajos? e mesmo assim, na citação que fiz de Muqadassi, isso aparece claramente. “(4) como se chamavam suas principais cidades?”: se ler a minha tese (2018) sobre o turismo evangélico para a região poderá conferir o nome de algumas cidades, inclusive aprender sobre o comércio, turismo, cotidiano, rotas ferroviárias etc. na Palestina do período. “(5) quais eram suas bases econômicas?”: agrícola, comércio e turismo na virada para o século XX. “(6) quais eram suas formas de governo?”: Otomano até o final da Guerra e Mandato Britânico após ela. “(7) quem eram seus líderes antes do egípcio Yasser Arafat?”: o reconhecendo de um líder confirma a existência de um povo! Então fica subentendido existirem os palestinos, uma cultura e tudo o que foi negado anteriormente. “(8) que idioma falavam?”: é preciso responder a isso? Quem não sabe ter sido o árabe? Aí estão oito respostas a questões que têm sido levantadas com a finalidade de fazer uma limpeza étnica ou genocídio cultural, conceito usado na sociologia para designar a tentativa e os esforços para apagar a memória de um povo, sua cultura, hábitos, resquícios etc.

Como havia adiantado acima, o fechamento do texto em questão procura fazer certas profecias do Antigo Testamento se cumprirem contra os palestinos de hoje, depois de tê-los associado aos edomitas. O texto pergunta: “haveria algum propósito na presença de povos antigos, que foram inimigos de Israel no passado, na terra de Israel, em oposição aos israelenses? Será que temos aqui uma repetição da presença dos cananeus e filisteus durante a conquista da terra, como um propósito divino – a fim de, como foi dito, treinar os israelitas na guerra, bem como prová-los na obediência aos mandamentos do Senhor (Jz.3:1-4)?” (ênfase acrescentada por mim).
De fato, Israel tem usado o massacre das populações palestina – incluindo cristãos que lá estão, como laboratório para o desenvolvimento da sua indústria bélica. Isso se demonstrou, por exemplo, no documentário The Lab (2013) de Yotam Feldman. Cristãos que oram pelas vitórias de Israel em guerra contra palestinos deverão repensar os galardões que esperam receber. Anglicanos, batistas como o autor do texto, pentecostais, católicos, luteranos, metodistas... sinceramente não compreendo esse estranho cristianismo. A ideia contida em textos como Isaias 2.3 e Zacarias 8.22, de muitos povos em Jerusalém buscando a palavra do Senhor certamente não se refere ao atual turismo religioso para o país, uma vez que se busca não a Palavra de Deus, mas entretenimento religioso, comércio e lazer. Tais passagens também reforçam a ideia de que a exclusividade na terra é utópica e irreal.
Para o autor, a profecia de Isaías 63:1-2 contra Edom se aplica (se cumpre nos) aos palestinos, porque há milênios os edomitas foram forçados a instalarem-se na região palestina. O sangue nas vestes do Messias, que o apóstolo João disse ser Jesus com vestes manchadas no conflito contra as nações rebeldes (não os palestinos especificamente), também tem o sentido distorcido no texto. Ele já havia escrito que Edom significa “vermelho” e agora faz o sangue dos palestinos manchar as vestes de um Jesus que o texto chama “Messias guerreiro”, insistindo num comportamento radicalmente contrário ao que Jesus ensinou, mas completamente alinhado à ideologia do sionismo revisionista, especificamente a ideologia de Wladimir Jabotinsky, famoso guerrilheiro judeu-russo, conforme exposto na obra A Muralha de Ferro, do judeu iraquiano Avi Schlaim. Jabotinsky formou o Corpo de Muleiros de Sião, em 1920, grupo que apoiava tropas aliadas realizando operações tais como o Hamas palestino realiza hoje.
Descontextualizando as profecias para fazê-las se cumprir contra os palestinos, ainda se pode ler que “Edom tipifica o mundo rebelde, implacavelmente hostil para com o povo de Deus (Amós 1:11), bem como o último inimigo a ser vencido pelo Messias” (ênfase acrescentada por mim) e “O juízo sobre Edom faz parte da vingança divina sobre as nações que ao longo dos séculos se levantaram injustamente contra Israel. Ora, dizer que Israel foi “injustamente” atacado é abandonar o texto bíblico completamente, haja vista que em não raras ocasiões, os próprios profetas advertiram que o Senhor movia nações no tabuleiro internacional para atacarem Israel e Judá por seus próprios pecados, não injustamente. Deus chamou comandantes estrangeiros de seus “servo” (Jr 27.6) e “ungido” (Is 45.1); como o texto pode fazer uma afirmação dessas? Também constou dos oráculos dos profetas o modo como o juízo de Deus sobre as nações se realizou não porque elas “se levantaram injustamente contra Israel”, mas porque foram infiéis a Deus no seu procedimento particular, como a idolatria, o sacrifício de crianças inocentes, entre outros motivos.

Considerações finais
O encerramento do texto é feito com imagens apocalípticas, como não poderia deixar de ser, insinuando que Deus vingará sempre os inimigos de Israel, no caso os palestinos, mas nunca fará o que está claro em todo o Novo Testamento: que Deus, por meio de Cristo, está reconciliando o mundo consigo. Ademais, o próprio Apocalipse tem sido apontado em estudos mais recentes como um livro em que devemos ver o papel missionário e evangelístico, não simplesmente condenatório e segregacionista. [2]
Insisto que considero desumano e pouco cristão negar a um povo a sua identidade, e mais, o direito de defender a sua existência. Em relação aos judeus, chamam isso de antissemitismo; e em relação aos palestinos? Nessa questão deve dar prioridade ao envolvimento de vidas humanas acima de tudo e de cristãos por consequência. Um cristãos deve focalizar esses pontos, separando ideologias perniciosas dos valores que a fé deve promover.
Em sociologia, tentar apagar a memória de um povo chama-se genocídio, e como disse, militantes mais aguerridos insistem na tecla do antissemitismo sem que se faça uma autocrítica sobre as consequências do posicionamento de Israel contra palestinos, e pior, cristãos palestinos. Confundir o Estado de Israel com o Israel do AT é um imenso equívoco. Uma coisa é a comunidade de fé que Jesus veio salvar; outra é uma unidade política constituída de pessoas que em sua maioria sequer professam uma fé. Como mencionei, um judeu criou um jornal à época chamado The Palestine Post! Não havia “Palestina”? A Organização Sionista tinha um órgão chamado Anglo-Palestine Company, fundada em Jafa em 1903 pelo Jewish Colonial Trust, de Londres, iniciado por Herzl. Não havia “Palestina” nem “palestinos”? (Gunneweg, 2005, p. 326).

Sobre a imprensa chamada “evangélica” (em geral), gostaria de deixar registrado que ela parece seguir o mesmo modelo tendencioso, parcial e interesseiro nas suas publicações, tal como a imprensa em geral. Há menos de um ano ofereci para o mesmo portal onde o autor publica os seus textos a possibilidade de publicarem artigos sobre o outro lado da história, a fim de informar a comunidade evangélica sobre aspectos bíblicos, sociais, teológicos e outros, mas sem o viés judaizante. Não tive resposta. Há algumas semanas apresentei a mesma proposta para o jornalista de outro veículo, e o mesmo disse que “pautas” dessa natureza não entram.
Qual é o medo dessa “imprensa evangélica”? Ela teme perder acessos e se descapitalizar? Então não é uma mídia “gospel”, do evangelho primeiro ou pleno, que guia à fé cristã, o que é lamentável pelo nível de desinformação que ela promove, além de servir a interesses bastante distantes da verdade em sua acepção mais ampla, como cabe a cristãos.
De fato, não há apoio claro e sério no Novo Testamento para esse apoio. Os apóstolos não escreveram que essa é a missão da Igreja. Há pessoas querendo fazer o trabalho de Deus, e receio que não colherão bons frutos. Deus é quem irá tratar com Israel. O nosso papel como agentes da reconciliação é de neutralidade. Há hoje meio bilhão de árabes esperando a pregação do Evangelho. Jesus está se revelando a eles por sonhos, porque elegeram como alvo das missões os pouco mais de 14 milhões de judeus que não querem saber de Jesus. Claro que serão salvos, mas e o arrependimento que a fé cristã preconiza? Ele não faz mais parte da fé cristã?
Mas há mais coisas envolvidas nisso. Há dinheiro, a ideia de prosperidade que o cristão alimenta. E aí, distorcem textos sobre prosperidade, como “abençoarei os que te abençoarem”. Eu mantenho contato com líderes judeus e eles dizem que essa interpretação que a Igreja faz do texto é absurda! Judeus veem nessa promessa o papel espiritual, não material. É uma vergonha para nós materializar o que eles veem como espiritual.
Que isso não ganhe forma nem força na Igreja brasileiros, já bastante afetada pela cultura circundante e sem a necessidade de servir de massa de manobra para os interesses os mais diversos.

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Notas e referências
[1] Ao saírem do Egito, o Senhor não permitiu a passagem mais curta pela região costeira do Mediterrâneo: “Quando o faraó deixou o povo sair, Deus não o conduziu pelo caminho da terra dos filisteus, embora fosse mais curto, pois disse: Para que, caso enfrente guerra, o povo não se arrependa e volte para o Egito” (Êx 13.17). Os filisteus ocupavam uma faixa de terra quando Israel avançou para a sua ocupação. Estavam lá não se sabe há quanto tempo, vindos do que hoje chamamos Ilha de Creta, a oeste do Mar Mediterrâneo. Jeremias, o profeta, chamou de Ilha de Caftor (Jr 47.4). Caftor é o local de onde descendem os caftorim, filhos de Mizraim (atuais egípcios, que ainda usam o nome). Comentando este versículo de Jeremias, Adam Clarke (1831) associou Caftor a Creta, Chipre ou a um possível distrito na Costa do Mediterrâneo ou próximo a Capadócia. Amós também se referiu aos filisteus como originários de Caftor, e acrescentou que o próprio Deus os tirou da ilha (provavelmente, conduzindo-os a Canaã): “Diz o Senhor: Ó israelitas, não sois vós para comigo como os etíopes? Por acaso não tirei Israel da terra do Egito, e os filisteus de Caftor, e os sírios de Quir?” (Am 9.7). Sendo assim, originalmente os filisteus não podem ser associados aos árabes, como se faz hoje.
[2] Como exemplo, menciono a obra de Grant R. Osborne, Comentário Exegético do Apocalipse. São Paulo; Edições Vida Nova, 2014.

AVNI, Gideon. The Persian Conquest of Jerusalem (614 c.e.) — An Archaeological Assessment. In Bulletin of the American Schools of Oriental Research, no 357 (Fev/2010), p. 35-48. Publicado por The American Schools of Oriental Research. Disponível em http://www.jstor.org/stable/27805159 e acessado em 21.03.2016.
CLARKE, Adam. Commentary on the Bible (1831), Jeremias 47. Disponível em http://www.sacred-texts.com/bib/cmt/clarke/jer047.htm acessado em 15.04.2014.
DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Ed. Vida Nova, 1995.
FERGUSON, Niall. A praça e a torre. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.
GUNNEWEG, Antonius H. J. História de Israel, dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias. São Paulo: Teológica, 2005.
MANSIR, D. F. C. Voices from Jerusalem, recommendations for the Religious and Civil Governance of Jerusalem. The Union Institute Graduate School Cincinnati, Ohio, 1999.
MUKADDASI, Palestina under the Moslems: a description of Syria, including Syria and Holy Land (From A.D. 650 to 1500). Translated from the Works of The Medieval Arab Geographers by Guy Le Strange, with maps and illustrations. London, 1890.
PAGANELLI, M. A relação entre a violência do Hamas e a interpretação do Corão [Dissertação em Ciências da Religião]. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2014.
SAID, E. W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.
TRUZZI, O. M. S. Patrícios: Sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1997.
WILKEN, Robert L. Byzantine Palestine: A Christian Holy Land. The Biblical Archaeologist, vol. 51, no 4 (Dec., 1988), p. 214-217,233-237. The American Schools of Oriental Research. <http://www.jstor.org/stable/3210073> acessado em 16.04.2016.


sexta-feira, 8 de novembro de 2019

ONDE A APOLOGÉTICA BRASILEIRA FALHA


São públicas as minhas críticas a alguns aspectos da chamada “apologética” cristã que se faz no Brasil. Coloco entre aspas o nome do estilo consagrado no período da Igreja Antiga, porque naquele tempo a defesa da fé era feita em alto nível, contra os ataques de cidadãos do Império Romano contra os cristãos e as peças eram lidas, em muitos casos, na corte, diante do Imperador. Aqui no Brasil, em sua maioria, são ataques pessoais, críticas sem um fundamento claro na Escritura do Novo Testamento e o pior: sem uma metodologia adequada.

Os meus alunos já ouviram-me contar a velha história de que, quando da minha conversão, em 1991, era “pecado” os membros das Assembleias de Deus (na maioria delas, é verdade) assistirem televisão. No final da mesma década era obrigatório assistir o programa de TV do pastor, para comprarmos os produtinhos vendidos por eles, pois só com essa verba o horário no canal poderia ser pago. Já nos anos 2000, a emissora havia sido comprada pela igreja.

Eu conto essa história para demonstrar como as “teologias”, como as “doutrinas” e os costumes entre os chamados “ortodoxos” mudam de tempos em tempos (Rubem Alves já disse isso bem antes de mim). Se nós mudamos de ideia em relação a posicionamentos teológicos, bíblicos e doutrinários, que presunção é essa que nos leva a pensar que outros grupos religiosos que se consideram cristãos não podem mudar as suas doutrinas? Eles estão mudando e tenho notícias sobre isso. Só nós avançamos enquanto os outros ficam congelados no tempo? Isso é um disparate! É simplesmente irreal, uma mentira.

Há alguns anos, um conhecido apologista veio a mim pedir orientação para produzir uma volumosa obra literária atacando uma denominação considerada seita. Eu disse a ele que era preciso sentar-se com os líderes e com os membros, entrevistá-los e procurar saber o que é que eles creem, como é a vida de fé daquelas pessoas etc. Ele retrucou, dizendo que assim não poderia “demonstrar” que eram heréticos, pois não teria como “provar pelos documentos deles” as heresias em que acreditavam. Engano. Quem foi que disse que entrevistas não são usadas como evidência científica? O IBGE, por exemplo, usa qual metodologia para apresentar um retrato da nossa sociedade? São milhões de entrevistas!

Por fim, um conhecido desse sujeito publicou uma obra que tem sido anunciada como a mais completa contra determinada denominação “herética”. Eu entrevistei esse autor e ele confirmou que as “descobertas surpreendentes” dos quatro anos de pesquisa que fez estavam em documentos publicados nas décadas de 1950 e 1980, por exemplo. Lamentável. Se em 10 ou 15 anos uma denominação muda alguns de seus posicionamentos, que dirá em 40 ou 70 anos!

Assim, no segundo semestre de 2019, os meus alunos na disciplina Religiões Comparadas (nos três seminários onde leciono) e eu demos início a uma pesquisa na qual a metodologia é a entrevista estruturada e qualitativa. Até agora foram entrevistadas 150 pessoas, entre líderes e membros de denominações consideradas “seitas”. Esses números já me permitem escrever um artigo científico considerável, robusto, sobre o tema da apologética no cenário brasileiro. Mas vou seguir com as entrevistas por mais um ano.

Preliminarmente posso antecipar duas coisas. Primeiro, os alunos relataram experiências riquíssimas no contato pessoal com outras fés. Puderam identificar as falhas na “apologética tradicional”, quando o relato dos entrevistados não confere com o que os apologistas dizem. Isso confirmou o que eu disse sobre o material desatualizado produzido por esses autores e pregadores. Além disso, a quebra de barreiras, de preconceito e estereótipos também foi relatada pelos alunos. O ganho nessa área foi grande. A segunda coisa, eles aprenderam que aquilo que está no papel nem sempre é o que está no dia a dia dos crentes. Isso já foi confirmado por mim em uma experiência com uma denominação reformada no Brasil, mas todos os alunos notaram a disparidade entre o oficial e o oficioso. Esse aspecto é o que eu queria que o meu conhecido contornasse, mas como ele evitou as entrevistas, acabou produzindo uma obra já desatualizada.

Por fim, o que é que salva uma pessoa, a fé em Jesus somente (sola fide) ou a adoção de uma doutrina completa? Primariamente, só a fé em Cristo e em sua obra, nada mais. Se a doutrina salva, o que não é o caso, qual seria essa doutrina, haja vista termos tantas vertentes? Se todas elas estão certas em suas bases comuns, essa base comum é a fé, e ponto. Acredito que depois de terminar essa pesquisa, escreverei um artigo e espero, com isso, trazer uma profunda e séria reflexão para a Igreja brasileira, a fim de que não sejamos mais levados por informações defasadas, por preconceitos e tendências vindas de ministérios norte-americanos, mas que não encontram amparo na tradição milenar da fé cristã.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

LENDO O ANTIGO TESTAMENTO COMO CRISTÃOS


O breve texto a seguir nasceu de uma reação feita por uma leitora a respeito de um ensaio que escrevi, onde apresentei argumentos contra as afirmações que um pastor fez sobre Israel. A discussão era completamente dentro do campo das ciências sociais, não da Teologia. A leitora, por sua vez, cobrou de mim bases bíblicas para a discussão (o que não era o caso), e então eu me dispus a responder os pontos que ela apresentou.
Aqui, reproduzo uma expansão da minha resposta a ela, por entender que ainda são questões candentes para muitos e muitos cristãos hoje.
Em primeiro lugar, pessoalmente, eu penso que somente o Senhor pode dar/trazer a solução para o conflito Israel-Palestina (IP) e para os conflitos no Oriente Médio que envolvem o islã também. No entanto, como cristão e como Igreja, entendo que todos somos ordenados por Deus a trabalhar pela paz de todos os povos, indistintamente (é imperativo o cristão viver em paz com todos [Hb 12.14], ser pacificador a fim de ser chamado filho de Deus [Mt 5.9] e amar os inimigos [Mt 5.43-44]). Tomar partidos, lados, posicionamentos ideológicos ou nacionalistas não é a vocação da Igreja.
A leitora cobrou posição sobre as promessas de Deus em relação a Israel, afirmando que as mesmas são eternas e irrevogáveis. Ela reafirmou o seu entendimento de que a terra é do povo de Israel. A isso eu respondo que irá depender de como lemos as Escrituras. Podemos ler o que está no Antigo Testamento e permanecermos naquele ambiente, usando interpretações judaicas (e até sionistas, o que penso ser pior). Mas podemos ler o Antigo Testamento como cristãos, com as “lentes” do Novo Testamento, dadas para nós pelos autores que escreveram essa parte da Bíblia. Penso que devemos nos apoiar no que os autores inspirados por Deus escreveram. E no Novo Testamento, leio em Hebreus 11.8-9 que o recebedor da tal promessa “irrevogável”, o patriarca Abraão (quem mais que ele deveria tomar posse da terra?!) peregrinou por ela como se fosse estrangeiro! Ele não considerou a terra material, geográfica, com apego material indisputável, de onde não deveria arredar o pé. Sabemos que as coisas de Deus se dão e acontecem pela fé e já eram assim desde Abraão, o pai da fé. Ele entendeu isso, mas cristãos hoje não compreendem.
Aprendo com essa passagem que as promessas de Deus são irrevogáveis, sim, mas o contexto e as condições de recebimento dessas promessas precisam ser compreendidos e aprofundados. Deus fez pactos com Abraão e com Davi e ambos encontram cumprimento na pessoa de Jesus, por isso são eternos! Assim é que Paulo (vamos duvidar dele, um judeu chamado por Cristo?), ao escrever Gálatas 3.16, nos ensinou que a promessa de posse da terra a ser dada “ao seu descendente”, que a leitora chamou irrevogável, não encontrou cumprimento no povo judeu coletivamente, mas novamente em Jesus! O texto diz: “Não aos descendentes, como se falando de muitos, mas em um só, que é Jesus”. Isso confirma o que estou argumentando.
Do mesmo modo acontece com o outro pacto eterno, de que não faltaria sucessor no trono de Davi. Aprendemos com Pedro (seria ele ignorante a esse respeito?) que a “promessa irrevogável” de sucessor no trono de Israel também encontra cumprimento na pessoa de Jesus. Diz Atos 2.29-35, bem claro:

“Irmãos, posso dizer-lhes com franqueza que o patriarca Davi morreu e foi sepultado, e o seu túmulo está entre nós até o dia de hoje. Mas ele era profeta e sabia que Deus lhe prometera sob juramento que colocaria um dos seus descendentes em seu trono. Prevendo isso, falou da ressurreição do Cristo, que não foi abandonado no sepulcro e cujo corpo não sofreu decomposição. Deus ressuscitou este Jesus, e todos nós somos testemunhas desse fato. Exaltado à direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e derramou o que vocês agora veem e ouvem. Pois Davi não subiu ao céu, mas ele mesmo declarou: ‘O Senhor disse ao meu Senhor: Senta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos como estrado para os teus pés’.” (ênfases acrescentadas)

Quando os hebreus saíram do Egito, Deus prometeu a ocupação da terra aos judeus. Mas o Salmo 24 diz que a terra toda é do Senhor. Por isso, Êxodo 22.21-23 diz para não maltratar o estrangeiro. Árabes e palestinos são estrangeiros? Se maltratassem haveria punição. Da terra de Deus, os povos devem retirar o seu sustento, porque ela é do Senhor (Salmo 24.1). Não se pode vender nem comprar a terra, diz o Levítico 25.23 (se tomarmos esse texto rigorosamente, qual a posição adotar?).
Outra questão levantada (não pela leitora, mas por outro leitor), é que Isaías 66.8 se cumpriu em 14 de maio de 1948, quando David Bem Guryon declarou a independência do Estado de Israel. O texto diz: “Quem jamais ouviu tal coisa? Quem viu coisas semelhantes? Poder-se-ia fazer nascer uma terra num só dia? Nasceria uma nação de uma só vez? Mas Sião esteve de parto e já deu à luz seus filhos” (fui informado por um conhecido que essa ideia foi defendida na Revista Jovens 2º Trimestre 2015. Rio de Janeiro: CPAD. Tema: Jesus e o seu tempo).
A primeira lição de interpretação de textos (hermenêutica) é a consideração dos contextos imediato e remoto. Dizer que a assembleia que declarou o início do moderno Estado de Israel fez cumprir a profecia de Isaias é algo bastante reducionista. Se o autor da revista ou qualquer leitor voltar apenas um versículo, lerá o seguinte: “Antes de entrar em trabalho de parto, ela dá à luz; antes de lhe sobrevirem as dores, ela ganha um menino.” Na tradição cristã, quem é “o menino”, Jesus ou um país que surgiu no século XX? Veja também o contexto remoto em Isaias 9.3-6 em que fala do surgimento de uma nação, mas concluir dizendo que “um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz.” Alguma dúvida?
Agora vejamos o que o Novo Testamento diz sobre essa nação. Ela nasceria num só dia, e Jesus nasceu num só dia. Ao nascer esse menino, muitos creriam Nele, formando um só povo, isto é, a nação que Pedro chamou de “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. (1Pedro, 2.9, ênfase acrescentada). Assim, o que surgiu num só dia como profetizado por Isaias foi o Cristo e nele nasceu a Igreja.
Não podemos abrir mão dessa interpretação sob risco de interpretarmos a Escritura de maneira completamente descontextualizada. Por hora é o que precisamos compreender.

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